JUSTIÇA DE SP CONDENA PREFEITURA DE ITU POR ASSÉDIO MORAL (OU TRANSFERÊNCIAS ABUSIVAS E A NECESSIDADE DE DEMONSTRAR A ILEGALIDADE DO ATO).
A
configuração fática do assédio moral no serviço público.
Em 27/09/2019 o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
(TJ-SP) divulgou relevante decisão[1] sobre a condenação do
município de Itu por assédio moral sofrido por servidora pública que se demitiu do cargo, ao que tudo
indica também em razão do assédio moral.
Trata-se de Acórdão da 5ª Câmara de Direito Público do
Tribunal de Justiça de São Paulo que teria “corrigido” o valor de indenização
concedida à servidora prejudicada, Assistente Social do Centro de Referência de
Assistência Social (Cras) de Itu. Segundo a notícia veiculada no site do TJ-SP o dano indenizável foi arbitrado
em R$ 8 mil.
A fim de compreender os motivos da demanda analisamos a íntegra do processo.
Segundo relatou, enquanto esteve na ativa a trabalhadora passou a ser
coordenada por superiora hierárquica que teria abusado dos poderes administrativos, agindo com desvio de finalidade. Constou
que a organização da rotina imposta pela gestora afetou severamente a normalidade do atendimento pelos
assistentes sociais, acarretando prejuízos
à dignidade e à qualidade dos serviços oferecidos ao público-alvo. Houve
numerosas queixas dos usuários; os servidores subordinados à gestora passaram
enfrentar dificuldades laborais diariamente.
Em certo momento, por inequívoca manifestação de
pessoalidade, a autora passou a ser
perseguida pela sua gestora. Alegou que as formas de assédio moral consistiam em: interromper atendimentos
sigilosos prestados aos usuários; insistência em não retomar a normalidade da
organização do trabalho; adoção de determinações autoritárias, tais como a
exigência de comparecimentos imediatos à sala da supervisora, impondo
interrupções no atendimento ao público; cobranças desproporcionais e
insistentemente irônicas, exigindo a elaboração de trabalhos e procedimentos
desnecessários, inservíveis e descabidos; constrangimento perante o público,
mediante reprimendas desnecessárias e vexatórias; adoção de linguagem e
expressão grosseira e ríspida; difamação profissional da autora; impedimento ao
devido desempenho da atividade profissional regulamentada, bem como a
contestação sistemática à decisões e à autonomia profissional da servidora;
ameaças invocando a autoridade de outros escalões hierárquicos; distorção de
acontecimentos; elaboração de relatórios que não retratavam a realidade dos
fatos; transferência arbitrária e com desvio de finalidade.
A municipalidade defendeu-se dizendo que houve a instauração de processo investigatório
(sindicância ou PAD), mas nada de irregular foi constatado. Todavia, em sede
judicial foram ouvidas as testemunhas, que comprovaram os fatos narrados no
processo. Registre-se que indenização
pleiteada pela autora era de R$ 20.000,00.
A sentença de primeira instância, na ausência de legislação municipal sobre a configuração de
assédio moral, valeu-se da aplicação analógica (art. 4º da Lei de Introdução às
Normas do Direito Brasileiro) da Lei Estadual 12.250/06[2], notadamente do art. 2º que tipifica as condutas
caracterizadoras de assédio moral no serviço público, e destacou o depoimento
de uma das testemunhas ouvidas:
“A nova
coordenadora retirou o agendamento e os usuários passaram a ser atendidos
conforme iam chegando. Esse novo método ocasionou muita demora e espera por parte dos usuários, que chegavam
a aguardar 4 ou 5 horas na fila para serem atendidos, resultando em inúmeras
reclamações, que eram repassadas à coordenadora. (...), então, começou
a perseguir (...). (...) cobrava
relatórios; adentrava na sala de (....) durante o atendimento, sem qualquer
aviso, cobrando agilidade ou solicitando algum documento ou relatório que não
era relacionado ao atendimento; questionava as decisões de (...) e a ameaçava
dizendo que iria falar com a Secretária; exigia que (...) inserisse dados
inverídicos nos relatórios sociais; falava em voz alta e sem qualquer educação.
(...) fazia isso com toda a equipe, de forma frequente, falando sempre de forma
grosseira e ríspida. Posteriormente, (...) foi transferida por (...) para outro CRAS, mesmo contra sua vontade,
e atualmente trabalha na Prefeitura de Sorocaba. (...) não deixava a depoente e
outras estagiárias participarem das reuniões da equipe técnica.”
Mesmo considerando a veracidade e a gravidade dos fatos, o
Juízo de Primeira Instância afirmou que o
valor pretendido a título de indenização seria exagerado; condenou o Município
de Itu em módicos R$ 5.000,00. As partes apelaram, e em segunda
instância a indenização de R$
5.000,00 foi corrigida ainda de forma irrisória: R$ 8.000,00.
Transferência
abusiva é forma de assédio moral de difícil comprovação ou de comprovação não
reconhecida.
A decisão de segunda instância (5ª Câmara de Direito
Público), embora tenha aumentado o valor da indenização, levou ao conhecimento
do público que uma específica forma
de assédio moral é de difícil comprovação; trata-se do ato de
transferência sabidamente arbitrária. Segundo a decisão do TJ/SP:
“Em relação à transferência da autora
para outra CRAS, o evento não pode ser considerado para fins de assédio moral,
uma vez que compete à
discricionariedade da Administração Pública a alocação de seus servidores.”
É bom que se diga que a discricionariedade não é um “curinga”
que possa justificar todo e qualquer tipo de desmando. Com efeito, a título de
exemplo citamos a Lei Estadual 10.177/98, que regula a prática de atos e de
processos administrativos no âmbito da Administração Pública estadual. Diz a lei:
“Artigo 4.º - A Administração Pública atuará em obediência aos
princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade,
razoabilidade, finalidade, interesse público e motivação dos atos
administrativos.
(...)
Artigo 8.º
- São inválidos os
atos administrativos que desatendam os pressupostos legais e regulamentares de
sua edição, ou os princípios da Administração, especialmente nos casos de:
I - incompetência da pessoa jurídica,
órgão ou agente de que emane;
II - omissão de formalidades ou procedimentos essenciais;
II - omissão de formalidades ou procedimentos essenciais;
III - impropriedade do objeto;
IV - inexistência ou impropriedade do
motivo de fato ou de direito;
V - desvio de poder;
VI - falta ou insuficiência de
motivação.
Parágrafo
único - Nos
atos discricionários, será razão de invalidade a falta de correlação lógica
entre o motivo e o conteúdo do ato, tendo em vista sua finalidade.
Artigo 9.º
- A motivação indicará
as razões que justifiquem a edição do ato, especialmente a regra de
competência, os fundamentos de fato e de direito e a finalidade objetivada.”
E no caso do assédio moral, o ato é praticado com abuso e/ou desvio de poder, portanto nulo
nos termos do art. 3º da Lei Estadual 10.250/2006: “Artigo 3º - Todo ato resultante de assédio moral é nulo
de pleno direito.”.
Estamos atuando em caso de transferência abusiva e arbitrária
de servidor público de autarquia estadual. E com a mais plena certeza podemos
afirmar que a Administração Pública, por intermédio de seus servidores
comissionados/de confiança se empenham para comprovar os desvios
administrativos. Não há o mínimo constrangimento perante o colega prejudicado!
E em se tratando de transferências
abusivas configuradoras de assedio moral, é indispensável uma atuação previamente ordenada a comprovar a
desnecessidade da alteração do local de trabalho, para apontar a inexistência
ou a inaplicabilidade da discricionariedade administrativa. Aliás, o
administrativista José dos Santos Carvalho Filho[3] já esclarece que:
“Diversamente sucede nos atos discricionários. Nestes é a
própria lei que autoriza o agente a proceder a uma avaliação de conduta,
obviamente tomando em consideração a inafastável finalidade do ato. A valoração
incidirá sobre o motivo e o objeto do ato, de modo que este na atividade discricionária,
resulta essencialmente da liberdade de escolha entre alternativas igualmente
justas, traduzindo, portanto, um certo grau de subjetivismo.
Salienta, todavia, moderna doutrina,
que os atos discricionários não
estampam uma liberdade absoluta de agir para o administrador. A avaliação que
ser permite ao administrador fazer tem que estar em conformidade com o fim legalm ou seja, aquele alvo que a lei, expressa
ou implicitamente, busca alcançar. Não havendo tal conformidade , o ato não é
licitamente produzido, pois que estará vulnerando o princípio da legalidade,
hoje erigido à categoria de princípio administrativo (art. 37, CF).”
[1]
Apelação nº 1006665-40.2017.8.26.0286, conforme link disponível em https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=58966,
acessado em 01/10/2019.
[2]
“Artigo 2º -
Considera-se assédio moral para os fins da presente lei, toda ação, gesto ou
palavra, praticada de forma repetitiva por agente, servidor, empregado, ou
qualquer pessoa que, abusando da autoridade que lhe confere suas funções, tenha
por objetivo ou efeito atingir a auto-estima e a autodeterminação do servidor,
com danos ao ambiente de trabalho, ao serviço prestado ao público e ao próprio
usuário, bem como à evolução, à carreira e à estabilidade funcionais do
servidor, especialmente:
I - determinando o cumprimento de atribuições estranhas ou de
atividades incompatíveis com o cargo que ocupa, ou em condições e prazos
inexeqüíveis;
II - designando para o exercício de funções triviais o exercente
de funções técnicas, especializadas, ou aquelas para as quais, de qualquer
forma, exijam treinamento e conhecimento específicos;
III - apropriando-se do crédito de idéias, propostas, projetos ou
de qualquer trabalho de outrem.
Parágrafo único - Considera-se também assédio moral as ações,
gestos e palavras que impliquem:
1 - em desprezo, ignorância ou humilhação ao servidor, que o
isolem de contatos com seus superiores hierárquicos e com outros servidores,
sujeitando-o a receber informações, atribuições, tarefas e outras atividades
somente através de terceiros;
2 - na sonegação de informações que sejam necessárias ao
desempenho de suas funções ou úteis a sua vida funcional;
3 - na divulgação de rumores e comentários maliciosos, bem como na
prática de críticas reiteradas ou na de subestimação de esforços, que atinjam a
dignidade do servidor;
4 - na exposição do servidor a efeitos físicos ou mentais
adversos, em prejuízo de seu desenvolvimento pessoal e profissional.”.
[3] “Manual de
Direito Administrativo”, 22ª ed. Lumem Juris Editora, 2009, p. 125.