sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

SPTRANS É OBRIGADA FORNECER BILHETE ÚNICO GRATUITO A PORTADOR DE VISÃO MONOCULAR.

Em decisão recente o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo assegurou a uma munícipe portadora de visão monocular o direito à gratuidade no transporte público municipal (ônibus), benefício que vinha sendo negado pela SPTRANS desde o ano de 2017. Esta decisão, além de assegurar a gratuidade nos ônibus, certamente também embasará futuro pedido de gratuidade para o transporte por trilhos (metrô e trens metropolitanos).

Resumo do caso: uma cidadã portadora de CID 10 H54.4 (cegueira em um dos olhos) e H40.3 requereu à SPTRANS a concessão do Bilhete Único Gratuito para Portadores de Deficiência. Apresentou laudo médico e demais documentos médicos que comprovavam a sua enfermidade ocular. A gratuidade foi negada administrativamente pela SPTRANS, alegando que:

“Para a concessão do benefício da gratuidade no transporte público do Município, a pessoa que apresente deficiência física, visual, auditiva  ou mental (intelectual, temporária ou permanente, deve atender aos requisitos previstos na legislação municipal (Lei nº 11.250/92, Lei nº 14.988/09 e Portaria Interministerial SMT/SMS nº 001/11, de 2 de dezembro de 2011). (...) Esclarecemos ainda que, seu benefício pode ter sido indeferido (negado) porque, apesar da existência de sequela, foi indicada outra CID. Para concessão do benefício é necessário que o Relatório Médico conste CID da sequela, que deverá fazer parte do rol das patologias que podem ser caracterizadas como deficiência e, também, deverão constar as limitações estabelecidas pelo Anexo I, da Portaria supracitada.”

 

Foi ajuizada uma ação judicial fundamentada, em síntese, nos seguintes argumentos: a deficiência está devidamente documentada em laudo médico, além de haver constatado outros problemas relacionados à visão, que poderão evoluir; garantia constitucional da dignidade da pessoa humana e assistência integral à saúde; especial proteção do direito à saúde das pessoas portadoras de deficiência; visão monocular expressamente reconhecida como uma deficiência pela Lei nº 14.481/2011; política de inclusão social e reabilitação, nos termos da Lei Municipal nº 11.250/92, lei esta que autorizou a Prefeitura a conceder gratuidade no transporte público para os portadores de deficiência; preceitos da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de Nova Iorque; direito fundamental à cidade, na forma do Estatuto da Cidade.

 

Houve um pedido de “liminar”, que foi negado em primeira instância. Posteriormente, a segunda instância concedeu a medida liminar, obrigando a SPTRANS a fornecer a gratuidade até sentença final. A SPTRANS defendeu-se no processo e recorreu da concessão da “liminar”. A sentença de primeira instância, de setembro de 2022 julgou improcedente a questão, em prejuízo da portadora de visão monocular. Houve um novo recurso para a segunda instância, em que o Tribunal de Justiça afirmou:

“(...) Pessoa portadora de ‘Visão Monocular’ (CID 10 H54.4) e ‘Glaucoma’ (CID 10 H40.3). (...) Embora não constem da Portaria Intersecretarial SMT/SMS nº 001/11 as enfermidades que acometem a autora, a Lei Municipal nº 14.988/09, que traça os parâmetros da referida isenção, determina a atualização da listagem de doenças conforme a Classificação Internacional de Doenças CID, não sendo, portanto, taxativa. E, sendo a ‘visão monocular’ considerada como deficiência física para fins de reserva de vagas em concurso público a seus portadores (Súmula nº 377 do STJ), não é desarrazoado que esse ‘status’ seja considerado para outras finalidades. Laudo pericial que atesta ser a apelante portadora de ‘visão monocular’ e ‘glaucoma’, condições que certamente lhe trazem consideráveis embaraços e dificuldades sensoriais, as quais podem impedir sua participação plena e efetiva no meio social, em igualdade de condições com os demais. Aplicação do art. 9º, 1, ‘a’, da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da Organização das Nações Unidas. Precedentes. Sentença reformada. Recurso provido.”
(TJSP;  Apelação Cível 1059893-47.2017.8.26.0053; Relator (a): Aroldo Viotti; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Público; Foro Central - Fazenda Pública/Acidentes - 16ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 07/02/2023; Data de Registro: 07/02/2023)

 

Em fundamentação complementar o Tribunal de Justiça ponderou que:

“As doenças referidas não estão em princípio inseridas no rol de
enfermidades que ensejam a seus portadores a isenção tarifária no transporte público, previsto no anexo I da Portaria Intersecretarial SMT/SMS nº 001/11.

No entanto, a própria Lei Municipal nº 14.988/09 determina seja referida
listagem atualizada conforme a Classificação Internacional de Doenças CID, de modo que não é taxativa
. E isto é tão mais verdadeiro a se ter em conta que a Lei Estadual nº 14.481/2011 e a Lei Federal nº 14.216/2021 classificam a visão monocular como deficiência visual. Destaca-se, ainda, que a ‘visão monocular’ é considerada como deficiência física para fins de reserva de vagas em concurso público a seus portadores (Súmula nº 377 do STJ), não sendo desarrazoado que esse ‘status’ seja considerado para outras finalidades.”

 

Portanto, considerou-se que é obrigação da municipalidade, da SPTRANS realizar a atualização da lista de enfermidades caracterizadoras de deficiências (e a SPTRANS não procedeu com a atualização). Ainda, que desde 2011 a visão monocular é caracterizada como deficiência para fins de reserva de vagas em concursos públicos, não havendo justificativa para negar a concessão de gratuidade. Citou diversas decisões do ano de 2022, que asseguraram o mesmo direito.

Enfim, decisão muito importante, que poderá fundamentar até mesmo o pedido de gratuidade para o transporte sobre trilhos.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

LEI ESTADUAL OBRIGARÁ O SUS ESTADUAL A FORNECER CANABIS MEDICNAL

Conforme divulgado no site da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP), na sessão extraordinária realizada na quarta-feira, 21/12 p.p., deputados estaduais aprovaram 79 projetos de lei de autoria dos deputados paulistas. Dentre o total de 79 projetos de lei, destacam-se aqueles de interesse para área da saúde. Agora, uma vez aprovadas para que sejam convertidos em leis estaduais, estes projetos seguirão para a sanção ou veto do Governador do Estado (Poder Executivo).


Confira aqui os projetos de lei aprovados pela ALESP, relativas à área da saúde:

PL 1.180/2019, institui política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos à base de canabidiol, em caráter excepcional;

PL 992/2015, autoriza o Poder Executivo a disponibilizar contraceptivos reversíveis de longa duração para mulheres;

PL 1.199/2015, dispõe sobre a realização de exames de detecção de mutação genética dos genes BRCA1 e BRCA2 em mulheres com histórico familiar do diagnóstico de câncer de mama ou de ovário;

PL 827/2017, institui o "Programa de Vacinação para Idoso Restrito ao Domicílio";

PL 979/2019, institui a "Semana de Conscientização e Prevenção sobre os Males Causados pelo Uso Intenso de Celulares, Tablets e Computadores por Bebês e Crianças";

PL 1.177/2019, institui e define diretrizes para a política pública Menstruação Sem Tabu, de conscientização sobre a menstruação e a universalização do acesso a absorventes higiênicos;

PL 85/2020, institui o "Mês Janeiro Branco", dedicado a ações de promoção do bem-estar e da saúde mental;

PL 225/2020, garante o acesso ao prontuário médico do paciente, por meios eletrônicos, nas redes pública e privada;

PL 535/2020, institui o Programa Estadual de Saúde Integral da População Negra e Afrodescendentes;

PL 665/2020,  estabelece prazo de validade indeterminado para o Laudo Médico Pericial que atesta o Transtorno do Espectro Autista (TEA);

PL 48/2021, torna permanente o Auxílio Financeiro às Instituições Filantrópicas de Combate ao Câncer (Onco São Paulo);

PL 186/2021, autoriza os servidores públicos estaduais ativos e inativos que solicitaram o cancelamento de sua inscrição a retornar à condição de contribuinte do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (Iamspe);

PL 520/2021, garantia de atendimento por pediatra, seja no âmbito dos atendimentos feitos pelas equipes de Saúde da Família, seja nas Unidades Básicas de Saúde;

PL 668/2021 (Janaina Paschoal e outros), pelo qual se proíbe a exigência de apresentação do cartão de vacinação contra a COVID-19 para acesso a locais públicos ou privados no Estado;

PL 733/2021,  autoriza o Governo a receber alunos de Medicina para a realização de estágio supervisionado, sem ônus para o Estado;

PL 836/2021, inclui no Calendário Oficial do Estado a "Semana de Prevenção e Combate à Insuficiência Renal Crônica e do Paciente Transplantado";

PL 98/2022, obriga as empresas de seguro-saúde, cooperativas de trabalho médico ou que prestam serviços médico-hospitalares, a garantir atendimento integral adequado às pessoas com deficiência;

PL 171/2022, assegura a gratuidade do serviço intermunicipal de transporte coletivo às pessoas portadoras de deficiência;

PL 191/2022,  institui a "Plataforma CURA - Canal Unificado de Remédios de Alto Custo";

PL 366/2022, institui o Programa Banco de Alimentos;

PL 545/2022, equipara as malformações congênitas fissura labiopalatina e/ou anomalias craniofaciais, bem como as síndromes correlatas, à condição de deficiência para efeitos jurídicos, no Estado.


Além dos projetos de lei, a ALESP também aprovou Projetos de Decretos Legislativos (PDLs), e aqui chamamos a atenção para o PDL nº 50/2022 que trata do ICMS e “anula o imposto sobre operações com fármacos e medicações destinadas a setores da administração federal, estadual ou municipal”.


A respeito do PL 1.180/2019 (de autoria do Deputado Estadual Caio França), a proposição institui a política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos à base de canabidiol, em caráter excepcional, eis algumas considerações.


De acordo com reportagens veiculadas até o momento, formalmente, a medida visa a evitar a judicialização e altos gastos públicos diante da necessidade excepcional de tratamento mediante utilização de medicamentos à base de canabidiol. Vejamos a ponderação contida no Parecer nº 1219/2021, da lavra do Relator, Deputado Paulo Fiorillo:

“Especificamente, almeja-se viabilizar que os enfermos recebam tratamento com medicamentos com substancias derivadas da cannabis sativa, tais como canabidiol, em associação com outras substâncias canabinóides, incluindo o tetrahidrocanabidiol em âmbito administrativo, sem a necessidade de provocação do Judiciário, que na atualidade surge como única alternativa para que seja possível a salvaguarda e a efetivação do seu direito a saúde.

(...)

A ampliação dos direitos fundamentais, após a Constituição Federal de 1988, exige maior ingerência estatal, concretizada através das instituições políticas, as quais, quando ineficientes, acabam demandando a atuação do Judiciário para sua tutela.

(...)

Na ocasião, foi constatado que o governo do estado, por meio de judicialização, já investia mais de R$ 8 milhões na importação de medicamentos derivados da cannabis para mais de 200 famílias.

(...)

Outrossim, vale relatar que mais de 10 milhões de brasileiros sofrem com dores crônicas, cujos tratamentos convencionais não apresentam resultados e que poderiam ser beneficiados com o uso terapêutico da cannabis medicinal, indicada para idosos, adultos e crianças, mas é importante destacar que somente um médico devidamente habilitado poderá analisar individualmente o quadro clínico de cada paciente e prescrever o medicamento.

Por fim, quanto aos aspectos financeiros e orçamentários, note-se que os custos de fornecimento destes medicamentos direito ao paciente sem a necessidade de envolvimento do Poder Judiciário serão inferiores, uma vez dispensados os gastos judiciais.”


O art. 4º do Projeto de Lei dispõe que:

“Artigo 4° - Fica assegurado ao paciente o direito de receber em caráter de excepcionalidade, mediante distribuição gratuita nas unidades de saúde pública estadual, medicamento de procedência nacional ou importado, formulado a base de derivado vegetal, industrializado e tecnicamente elaborado, nos termos das normas elaboradas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, que possua em sua formulação o canabidiol em associação com outros canabinóides, dentre eles o tetrahidrocanabidiol, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado para tratamento de saúde, acompanhado do devido laudo das razões de prescrição.

§1º - O medicamento a ser fornecido deve:

1 - ser constituído de derivado vegetal;

2 - ser produzido e distribuído por estabelecimentos devidamente regularizados pelas autoridades competentes em seus países de origem para as atividades de produção, distribuição ou comercialização;

3 - conter certificado de análise, com especificação e teor de canabidiol e tetrahidrocanabidiol, que atenda às respectivas exigências das autoridades regulatórias em seus países de origem e no território nacional pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA;

4 - A obrigação prevista no ‘caput’ deste artigo estende-se às unidades de saúde privadas conveniadas ao Sistema Único de Saúde - SUS.

§2º - O fornecimento que trata o caput somente será permitido mediante o cumprimento de todos os requisitos estabelecidos nesta Lei, e desde que o paciente comprovadamente não possua condições financeiras de adquirir os medicamentos nem de tê-los adquiridos pelo respectivo grupo familiar e/ou responsáveis legais, sem prejuízo do respectivo sustento.

§3º - A Secretaria de Estado da Saúde verificará se o medicamento se enquadra nos requisitos definidos nesta Lei e nas normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, antes de sua distribuição.”


Sendo o PL convertido em lei (após sanção do Poder Executivo), a distribuição do fármaco pelo SUS será precedida de condicionantes: a) o fornecimento será considerado um direito “expecional” (art. 4º, caput); b) o fármaco distribuído deverá ter sido previamente certificado pela ANVISA (art. 4º, § 1º, “3”); c) o paciente ou o seu grupo familiar deverá(ão) ostentar a situação, devidamente comprovável, de impossibilidade econômico-financeira, decorrente do prejuízo ao sustento próprio ou familiar em caso de necessidade de aquisição do medicamento.


É possível que, em sendo o PL convertido em Lei por sanção do futuro governador Tarcísio de Freitas, setores mais “conservadores” da sociedade venham a contestar judicialmente a constitucionalidade da (eventual) futura lei. Mas chama a atenção que dentre os parlamentares estaduais que votaram favoravelmente ao Parecer do PL 1.180/2019 está o deputado Delegado Olim (ex-integrante do GARRA), mas a deputada Janaína Paschoal (Professora de Direito Penal da USP), dentre outros, votou(ram) contrariamente. Há uma aparente contrasenso, que poderá ser compreendido futuramente.


Já o PDL 50/2022, que concede isenção de ICMS na disponibilização de fármacos e medicamentos destinados à Administração Púiblica Federal, Estadual e Municipal, tem o seguinte teor:

“Artigo 1º - Fica autorizada, nos termos do artigo 23 da Lei nº 17.293, de 15 de outubro de 2020, a implementação do Convênio ICMS 180/22, que altera o Convênio ICMS nº 87/02, que concede isenção do ICMS nas operações com fármacos e medicamentos destinados a órgãos da Administração Pública Direta Federal, Estadual e Municipal, ratificado pelo Decreto nº 67.346, de 14 de dezembro de 2022”.

sexta-feira, 17 de junho de 2022

PRODUÇÃO PARLAMENTAR: BREVE RESENHA SOBRE A PEC DO (DES)EQUILÍBRIO ENTRE OS PODERES.

I – Introdução.

O Preâmbulo da Constituição Federal expôs a intenção da Assembleia Nacional Constituinte, que produziu a vigente “Carta de Direitos de 1.988”:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.”.

 

E quando passou a viger, a Constituição Federal determinou o seguinte:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; 

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

 

O Estado brasileiro deve assegurar as condições para o pleno desenvolvimento individual, coletivo e social; garantir a dignidade da pessoa humana, o seu bem-estar; a igualdade, a justiça; instituir, estimular e manter uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

 

O que é o povo brasileiro? Apenas alguns brasileiros? Outros, não? O pluralismo político aceita a supremacia de um grupo majoritário que defenda privilégios de minorias (elites) em prejuízo de maiorias (marginalizados; excluídos; desempregados; assalariados; sem instrução, carentes de saúde e de cobertura previdência)? Igualdade, justiça, fraternidade não resultam da harmonização de interesses dos variados e diferentes grupos e interesses sociais e políticos?

 

Terça-feira, 14/06/2022, em primeira mão o jornal O Estado de São Paulo noticiou que:

“Líderes do Centrão têm pronta uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que, se for aprovada, dará ao Congresso poder para anular sentenças do Supremo Tribunal Federal (STF), informa Daniel Weterman. O texto prevê que o Legislativo poderá revogar julgamentos sempre que a decisão da mais alta Corte do País não for tomada por unanimidade dos ministros e se os parlamentares considerarem que o tribunal ‘extrapolou limites constitucionais’. A intenção do Centrão é reverter julgamentos que tenham derrubado leis aprovadas no Congresso Nacional ou contrariado bancadas. Levantamento do Estadão mostra que, de janeiro de 2019 até hoje, há 2.402 acórdãos (registros de decisões) sem unanimidade no plenário do STF.”.

 

A Exposição de Motivos da “PEC do (des)equilíbrio entre os poderes” apontou a razão da proposta:

“Uma vez elaborada e aprovadas as leis pelo legislativo e estando o executivo sujeito a observá-las e respeitá-las em sua missão de executar as políticas públicas, ficando ao judiciário a sublime função de julgar e assegurar o seu pleno cumprimento.

(...)

Assim, se o Supremo Tribunal Federal, de forma controversa e sem o entendimento ‘unânime’ de seus membros decide e julga contrariando a ampla maioria dos representantes do povo, o estado democrático de direito é colocado em risco.

Desta forma, é fundamental que haja recurso capaz de rever a decisão de afronta a vontade da ampla maioria do povo devidamente representado no Congresso Nacional. Por esta razão, considerando o ambiente cada dia mais tenso diante de decisões polêmicas e controversas, proferidas muitas vezes por um indivíduo em detrimento da opinião de milhões de brasileiros.”.

 

Será que a Constituição Federal admitiria a injusta imposição da vontade de uma maioria que fosse contrária ao espírito constitucional, aos valores sociais? Seria possível “cancelar” uma decisão judicial que (re)estabelecesse a justiça, a proporcionalidade, a harmonia social e coletiva, a dignidade da pessoa humana?

 

II – Breve Resenha Sobre o Processo Legislativo e a Separação de Poderes.

A Constituição Federal (art. 59 e seguintes) disciplina a forma e o modo de criação da legislação; trata-se do processo legislativo:

“Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:

I - emendas à Constituição;

II - leis complementares;

III - leis ordinárias;

IV - leis delegadas;

V - medidas provisórias;

VI - decretos legislativos;

VII - resoluções.

Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II - do Presidente da República;

III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

(...)

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.”

 

Porém, o art. 2º estabeleceu o princípio da separação de poderes:

“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

 

Perguntas: (i) a atividade legislativa (projetos de lei convertidos em leis) é resultado do trabalho de vereadores, deputados, senadores. Nunca há divergências entre vereadores, deputados, senadores? Vereadores, deputados e senadores representam todos os setores, as classes sociais e os interesses envolvidos sempre são convergentes? Os partidos estão sempre de acordo, de forma unânime, com as medidas que afetam os seus diversos eleitores (patrões e empregados; consumidores e fornecedores; ricos e pobres; homens, mulheres, crianças, idosos; negros, LGBTQIA+; religiosos e adeptos de todas as crenças)? As leis sempre (des)atendem aos anseios de toda a sociedade, de forma completamente justa e harmônica? Por que uma lei que modifique, limite ou retire direitos é aprovada? (ii) Imagine que exista um direito social previsto na Constituição Federal. Mas para usufruir este direito social é exigida também a elaboração de uma lei por deputados e senadores. Suponha que a maioria dos deputados e senadores não se interesse em tornar possível o acesso a este direito, porque a concessão do tal direito social pode representar a redução de uma vantagem, uma posição, um benefício para as suas empresas, os seus negócios, os apoiadores de sua(s) (re)eleição(ões). Então, por haver desinteresse, eles deixam de fazer a lei exigida pela Constituição Federal. A falta da lei essencial prejudicará um indivíduo, uma coletividade, grupos números, uma parcela da sociedade brasileira, ou até a maior parte da sociedade brasileira. (iii) Poderia o STF reconhecer que deixar de fazer uma lei essencial é uma forma de negar respeito à Constituição? Uma inconstitucionalidade por omissão? E se houver demora em fazer a lei? Seria (in)adequado que o STF utilizasse uma lei criada para uma situação parecida para regular situação semelhante ainda não disciplinada por lei negada pelo Legislativo? (iv) Seria (in)justo que deputados e senadores “derrubassem” a decisão do STF que tenha garantido um direito social negado pela falta de vontade política, pela demora dos deputados e dos senadores em elaborar a lei exigida pela Constituição Federal? Quando o STF garante um direito constitucional negado por falta de lei regulamentadora, isso seria interferência do Poder Judiciário (acionado por alguém prejudicado) no Poder Legislativo (deputados e senadores que não fizeram uma lei necessária)?

 

Reflexões a partir da PEC: Pode haver divergência, debates no processo de criação e elaboração de leis, mas não pode haver divergência em decisões judiciais. Um projeto de lei pode ser (des)aprovado pela maioria dos deputados e senadores. Uma decisão judicial não pode absolver ou condenar alguém, conceder direitos ou negar privilégios pelo julgamento da maioria de um grupo de juízes. Uma lei será válida mesmo não sendo resultado de aprovação de projeto pela unanimidade. Sendo válida e conforme a Constituição, o STF não poderá declará-la inconstitucional. Mas se não houver unanimidade de decisões em um julgamento do STF, o Legislativo (Câmara e Senado) pode cassar a decisão do STF.

 

Imagine que deputados estaduais resolvam que as decisões dos Tribunais de Justiça possam ser cassadas pelas Assembleias Legislativas estaduais.

 

III - A Separação de Poderes: do que se trata, afinal?

Em seu clássico Curso de Direito Constitucional[1], Manoel Gonçalves Ferreira Filho trata da separação de poderes dizendo o seguinte:

2. A LIMITAÇÃO DO PODER

Repugna ao pensamento político contemporâneo a ilimitação do poder. Ao contrário, é arraigada a convicção de que o poder, mesmo legítimo, deve ser limitado. Isto porque, na famosa expressão de Lord Acton, ‘todo pode corrompe’, inclusive o democrático.

Para limitar o poder, várias são as técnicas adotadas. Uma é a da divisão territorial do poder, que inspira a descentralização e não raro o próprio federalismo.

Outra consiste em circunscreve o campo de ação do Estado, reconhecendo-se em favor do indivíduo uma esfera autônoma, onde a liberdade não pode sofre interferências do Estado. É isso que se busca obter pela Declaração dos Direito e Garantias do Homem.

A terceira e a divisão funcional do poder, tão conhecida na forma clássica da separação dos poderes. É esta o objeto do presente capítulo, que é complementado pelos seguintes, em que se apontam as linhas mestras de cada um dos poderes identificados pela velha doutrina: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

4. A ‘SEPARAÇÃO DE PODERES’. SUA ORIGEM.

A divisão segundo o critério funcional é a célebre ‘separação de poderes’, que vai ser agora examinada. Essencialmente, a ‘separação de poderes’ consiste em distinguir três funções estatais – legislação, administração e jurisdição - e atribuí-las a três órgãos, ou grupos de órgãos, reciprocamente autônomos, que as exercerão com exclusividade, ou ao menos, preponderantemente.

A divisão funcional do poder – ou como tradicionalmente se diz, a ‘separação de poderes’ – que ainda hoje é a base da organização do governo nas democracias ocidentais não foi invenção genial de um homem inspirado, mas sim é o resultado empírico da evolução constitucional inglesa, qual a consagrou o Bill of Rights de 1689.

De fato, a ‘gloriosa revolução’ pôs no mesmo pé a autoridade real e a autoridade do parlamento, forçando um compromisso que foi a divisão do poder, reservando-se ao monarca certas funções, ao parlamento outras e reconhecendo-se a independência dos juízes.

(...)

Na verdade, tornou-se a ‘separação de poderes’ o princípio fundamental da organização política liberal e até foi transofrmada em dogma pelo art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

 

5. A CLASSIFICAÇÃO DAS FUNÇÕES DO ESTADO.

A ‘separação de poderes’, como se indicou acima, pressupõe a tripartição das funções do Estado, ou seja, a distinção das funções legislativa, administrativa (ou executiva) e jurisdicional.”

 

Outro grande constitucionalista de seu tempo, Celso Ribeiro Bastos[2] dizia não haver uma separação de poderes, mas uma tripartição das funções estatais: legislativa, executiva e judiciária. Eis a explicação:

1 . TRIPARTIÇÃO DAS FUNÇOES E NÃO TRIPARTIÇÃO DOS PODERES.

(...)

Vale, entretanto, notar que, qualquer que seja a forma ou o conteúdo dos atos do Estado, eles são sempre fruto de um mesmo poder. Daí ser incorreto afirmar-se a tripartição de poderes estatais, a tomar essa expressão ao pé da letra. É que o poder é sempre um só, qualquer que seja a forma Poe ela assumida. Todas as manifestações de vontade emanadas em nome do Estado reportam-se sempre a um querer único que é próprio das organizações políticas estatais.

Firmada a ideia de unidade do poder, voltamos ao estudo das diversas formas jurídicas assumidas pela atuação estatal em nome da coletividade que representa. Assim é que, pode vezes, o Poder Público edita regras gerais e impessoais destinada a regular todos os casos que venham a ocorrer e que coincidem com a hipótese legal. Por exemplo, ao dispor que ao fato de matar alguém corresponde uma determinada sanção, o Estado está prevendo sua atividade futura e vinculando-se a ela. Entretanto, é importante que se note, não está regulando o seu comportamento diante de um determinado homicídio, mas sim em face de todos os tos dessa natureza que venham a ocorrer. Temos aí uma função, a legislativa. A função constitui, pois um modo particular e caracterizado de o Estado manifestar a sua vontade.

(...)

3. AS TRÊS FUNÇÕES ESTATAIS: LEGISLATIVA, EXECUTIVA E JUDICIÁRIA.

Seguindo uma tradição muito antiga, são três as funções estatais: legislativa, executiva e judiciária. Para muitos autores, Aristóteles terá sido o primeiro a isolar, no funcionamento do complexo estatal, três tipos de atos: deliberações sobre os assuntos de interesse comum, organização de cargos e magistraturas e atos judiciais. O valor da descoberta aristotélica é muito relativo. Em nada influenciou a vida política durante, no mínimo, o milênio que se seguiu à sua vida. Durante esse imenso lapso histórico, dominou sem contestação a vontade do monarca, que reunia em si mesmo a três funções estatais, embora por razões de ordem prática, estas pudessem vir a ser delegadas a prepostos, segundo o seu critério.

A teoria apenas voltou a aflorar nos séculos XVII e XVIII, cabendo a Montesquieu a sua formulação mais acabada e perfeita juridicamente.

(...)

4.1. Aspectos ideológicos da Teoria da Separação de Poderes;

O que acontece é que para Montesquieu a separação de poderes não era uma teoria abstrata que se satisfizesse com a mera descrição das formas de atuar do Estado. Pelo contrário, ao determinar que à separação de funcional estivesse subjacente uma separação orgânica, Montesquieu concebia sua teoria da separação dos poderes como técnica posta a serviço da contenção do poder pelo próprio poder. Nenhum órgão dos órgãos poderia desmandar-se a pondo de instaurar a perseguição e o arbítrio, porque nenhum desfrutaria de poderes para tanto.

(...)

6. A TRIPARTIÇÃO DAS FUNÇÕES ESTATAIS NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA.

O princípio da separação de poderes está consagrado em nosso Código Político desde 1824.

Na constituição vigente, está no art. 2ºm que diz: ‘São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.’.

Note-se que a Lei Maior refere-se a ele ainda mais de uma vez no seu art. 60, §4º, III. Cuida-se aí de enunciar quais as matérias insuscetíveis de serem objeto de uma emenda constitucional; dentre elas figura a ‘separação dos poderes’.

É, portanto, um princípio insuprimível da nossa Constituição. Isto presta-se, sem dúvida, a revelar a importância que o constituinte lhe dispensou.”

 

Ícone da Doutrina constitucional, José Afonso da Silva[3], acrescenta:

“7. O princípio da divisão de poderes.

Esse é um princípio geral do Direito Constitucional que a Constituição inscreve como um dos princípios fundamentais que ela adota. Consta do seu art. 2º que são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário são expressões com duplo sentido.  

Exprimem, a um tempo, as funções legislativa, executiva e jurisdicional e indicam os respectivos órgãos, conforme descrição e discriminação estabelecidas no título da organização dos poderes (respectivamente, nos art. 44 a 75, 76 a 91 e 92 a 135).

Algumas considerações sobre o poder são necessárias para melhor compreensão do princípio.

(...)

10. Divisão de poderes

A divisão de poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função; assim, às assembleias (Congresso, Câmaras, Parlamento) se atribui a função Legislativa; ao Executivo, a função executiva; ao Judiciário, a função jurisdicional; (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação. Trata-se, pois, como se vê, de uma forma de organização jurídica das manifestações do Poder.

(...)

III. PIRNCÍPIO DA PROTEÇÃO JUDICIÁRIA

13. Fundamento

O princípio da proteção judiciária, também chamado princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, constitui em verdade a principal garantia dos direitos subjetivos. Mas ele, por seu turno, fundamenta-se no princípio da separação de poderes, reconhecido pela doutrina como garantia das garantias constitucionais. Aí se junta uma constelação de garantias: as da independência e imparcialidade do juiz, a do juiz natural ou constitucional, a do direito de ação e de defesa. Tudo ínsito nas regras do art. 5º, XXXV, LIV e LV.

 

14. Monopólio judiciário do controle jurisdicional.

O art. 5º, XXXV, declara: ‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’. Acrescenta-se agora ameaça a direito, o que não é sem consequência, pois possibilita o ingresso em juízo para assegurar direitos simplesmente ameaçados. Isso já se admitia, nas leis processuais, em alguns casos. (...)

A primeira garantia que o texto revela é a de que cabe ao Poder Judiciário o monopólio da jurisdição, pois sequer se admite mais o contencioso administrativo que estava previsto na Constituição revogada.”

 

De modo enxuto e simples, Elcir Castello Branco[4] distinguia as funções estatais (legislativa, executiva, judiciária), justificando a tripartição e explicando cada uma das funções:

1. DISTRIBUIÇÃO DO PODER

No Estado, o Poder é comando que dirige os indivíduos à cooperação entre si, orientando os atos comuns e eliminando os conflitos. Para que os obbjetivos sejam alcançados, as condutas requerem submissão à ordem geral. Este comando tecnicamente deflui da lei. Há organismos para elaborá-la e outros que se especializam e efetivá-la.

(...)

3. LEGISLAR

Legislar é ato de vontade emanado de uma pessoa ou de um colegiado, que dita normas adequadas às circunstâncias concretas de tempo, lugar e matéria.

(...)

É ato de vontade do Estado, por intermédio de sua autoridade competente, que obriga as pessoas a ela submetidas.

(...)

4. EXECUTAR

As normas aprovadas pelo Legislativo têm a força vinculante dos atos, porém o descortínio dos rumos do Estado, a conveniência e oportunidade da prática de certos atos, os recursos para atingir os objetivos programados, a determinação do número de pessoas e quais os que deem chefiar os órgãos disponíveis cabem a quem executa os atos do Estado.

(...)

5. JULGAR

(...)

O Poder confiado aos que têm a suprema incumbência de resolver esses litígios é o Poder Judiciário, que se compõe de magistrados que têm competência para resolver os conflitos, tutelando o direito das pessoas.

(...)

7. EQUILÍBRIO DOS PODERES

(...)

Com a separação dos poderes já se busca a dosagem do absolutismo do Estado, estabelecendo entrosamento entre eles, além de propiciar-lhes equilíbrio (check and balance). É primordial que eles atuem sem perda de autoridade e isenção, como verdadeiras magistraturas. Assim, não se imiscuindo uns nos outros, haverá o livre exercício de cada poder.”

 

Autor mais moderno, Eurico Zecchin Maiolino[5], resumiu que a “separação de poderes” é criação histórica, e este princípio constitucional não admite exclusão nem relativização:

“3.9. Limitações materiais ao poder de reforma constitucional: hierarquia e tendência à abolição.

Os limites materiais à reforma constitucional referem-se ao conteúdo da Constituição, expresso por determinada norma ou conjunto de normas. O Poder Constituinte pode retirar da competência reformadora a possibilidade de supressão de certa matéria da Constituição, para, desta forma, manter-lhe a identidade. As limitações materiais relacionam-se, portanto, ao conteúdo ou substância da Constituição e são denominadas cláusulas de intangibilidade, núcleo intangível, cláusulas pétreas, garantias de eternidade, disposições de intangibilidde, conteúdos fixos ou cláusulas limitativas da reforma  constitucional.

As disposições de limitação material, porque protegem um conjunto determinado de matérias que apresentam uma nota de fundamentalidade em relação às demais normas constitucional, têm a função de conferir à Constituição sua identidade e espíritos próprios.

Ao corporificar jurídica  e politicamente a sociedade e o Estado, o Poder Constituinte se vale de norma que impedem a alteração do conteúdo fundamental de seu estauto pelo exercício da competência reformadora; a alteração deste conteúdo fundamental estruturante é obra do Poder Constituinte e não do Poder de Reforma Constitucional.

(...)

A Constituição Federal de 1988 estabelece as seguintes limitações materiais ao Poder de Reforma Constitucional: a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.

(...)

A Constituição Federal prevê, em seu art. 60, § 4º, que ‘não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir...’.

(...)

3.9.3. A separação de poderes

Pela primeira vez na história constitucional brasileira, a separação de poderes constitui o cerne imutável da Constituição.

Ao prever que a separação de poderes não pode ser abolida, a Constituição deseja que o poder político não seja unificado, centralizado, concentrado em uma única categoria institucional a totalidade de poder e, assim, concedendo uma primazia a um poder em relação aos outros.

(...)

A separação de poderes do Estado, contudo, não é uma ideia política jusnaturalista ou atemporal. É uma criação histórica, e, sendo assim, apresenta expressão diversificada de acordo com sua situação temporal e espacial e em decorrência das contingências particulares de cada povo, cada Estado e cada Constituição.

(...)

Deve se resguardada, outrossim, a adequação funcional entre as atividades e os Poderes aos quais são atribuídas. A substituição das atividades típicas atribuíveis a cada um dos Poderes do Estado tem de manter com a estrutura orgânica uma relação de adequação funcional. Cada um dos Poderes de Estado é constitucionalmente conformado ao adequado exercício das competências constitucionais que lhe são imputadas, e as reformas que toquem na separação de poderes não podem quebrar estra relação de atributividade-adequação, provocando uma desorganização político-institucional e, pior, enfraquecendo o sistema de proteção da liberdade que anima a divisão funcional do poder.

Assim, se o Judiciário exerce uma função contramajoritária, não pode receber funções legislativas típicas, mormente porque não e composto por membros democraticamente eleitos. Na sua conformação constitucional de contrapoder reside a garantia da execução de suas funções com independência. Ao se lhe atribuir, por conseguinte, tarefas legislativas de expressão genérica, corre-se o risco de enfraquecimento da tarefa de resolução de conflitos concretos e de proteção dos direitos fundamentais – que é o conteúdo essencial da função judiciária.

(...)

Repita-se, como afirmamos algures, que a vedação à supressão da separação de poderes é preordenada a evitar a concentração do poder político em uma única categoria institucional, assim concedendo uma primazia a um poder em relação ao outros, e, no regime parlamentar de governo, a influência demasiada de poder em direção a um só complexo orgânico não acontece.

(...)

Finalmente, o último aspecto a se considerar na reforma da Constituição, no que se refere especificamente a esta cláusula limitativa, é a mantença da separação de poderes como mecanismo de controle recíproco dos Poderes de Estado.

 

A repartição de funções estatais (atribuídas a diferentes poderes que as exercem de forma separada e especializada) é um antigo instrumento de contenção de abusos cometidos por todo aquele que tem, unicamente em suas mãos, todas as funções e o poder de regulação da vida social; quando uma só pessoa (governante) faz as leis, aplica as leis por ele criadas e julga alguém convencido de que foram descumpridas as suas leis certamente ocorrerá injustiça, haverá abusos; concessão de privilégios e impunidade para alguns, excessos para outros.

 

A separação de poderes tem origem histórica; hoje um princípio constitucional. A distribuição especializada de funções estatais interligadas previne desvios, perseguições, injustiças e impõe especialização no desempenho das funções típicas de cada Poder.

 

III.I – Separação de Poderes e o Art. 37 da Constituição Federal.

Conforme dito, a repartição de funções conterá abusos e determinará especialização. Vereadores, deputados, senadores (Legislativo) devem profissionalizar-se em elaborar bons projetos, aprovar legislação de qualidade e que atendam ao bem comum. Prefeitos, governadores e o Presidente da República (Executivo) devem aplicar a legislação da melhor forma possível, de modo eficiente, econômico e eficaz, buscando o bem comum. Se o Legislativo e o Executivo falharem, cabe ao Poder Judiciário, adequadamente, decidir os conflitos surgidos e (re)estabelecer a justiça, eliminando lacunas, violação a direitos, fazer cessar privilégios e conceder direitos indevidamente sonegados.

 

No desempenho de cada uma das funções de Estado pelos respectivos poderes (Legislativa, Executiva e Judiciária) exige-se a fiel observância ao art. 37, caput, da Constituição Federal, segundo o qual:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:”

 

IV – Conclusão: Aparentemente, uma PEC inconstitucional.

A exposição de motivos da “PEC do (des)equilíbrio entre os poderes” esclareceu a razão da proposição. A histórica da ideia de tripartição de funções a elevou à condição de princípio. No caso brasileiro, este princípio está condito nas cláusulas dos art. 2º e 60, § 4º, III da CF/88. O conteúdo da chamada “PEC do (des)equilíbrio entre os poderes”, sequer poderá, s.m.j, ser objeto de discussão, de deliberação e/ou votação no âmbito do Congresso Nacional. Há impedimento contido no art. 60, § 4º, III da CF/88, que não admite deliberação de qualquer proposta de emenda à constituição que pretenda abolir ou relativizar: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.

 

Quer parecer, neste momento, que a “PEC do (des)equilíbrio entre os poderes” é vedada pelo art. 60, § 4º, III da CF/88. A separação de poderes é uma das cláusulas pétreas da Constituição Federal.



[1] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 26ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 130/132.

[2] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 341/343.

[3] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros. 2008, p. 106; 430/431.

[4] BRANCOElcir CastelloTeoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 148; 150/151; 158.

[5] MAIOLINO, Eurico Zecchin. Poder de reforma constitucional: limitações. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 137/138; 155.