MÉDICO-LEGISTA POLICIAL E A ACUMULAÇÃO DE CARGOS E FUNÇÕES PÚBLICAS.
1 - INTRODUÇÃO.
A presente análise surge após a leitura
do Parecer PA-3 nº. 148/99[1],
da lavra do Procurador do Estado Chefe da 2ª Seccional da 3ª Subprocuradoria –
PGE/SP, o Dr. Carlos Ari Sundfeld, sumidade em Direito Administrativo. Trata-se
de consulta formulada por médico-legista da Polícia Civil do Estado de São
Paulo quanto à possibilidade de acumular, além do cargo de médico-policial, outro
cargo ou função pública.
Chamou a nossa atenção a justificativa
mencionada pelo parecerista para fundamentar opinião negativa quanto à
acumulação, razão pela qual - e não obstante a autoridade do parecerista,
advogado do Estado - sentimo-nos na obrigação de avaliar com maior profundidade
a questão.
2 – DA IMPOSSIBILIDADE DE ACUMULAÇÃO: A JUSTIFICATIVA DA
PROCURADORIA DO ESTADO.
A justificativa pela inviabilidade da
acumulação resumiu-se à invocação da Lei Complementar Estadual nº. 207/79, mais
precisamente quanto ao artigo 44 da citada norma, o qual dispõe:
“Artigo 44 - Os cargos
policiais civis serão exercidos necessariamente em regime especial de trabalho
policial, que se caracteriza:
I - pela
prestação de serviço em jornada de, no minimo, 40 (quarenta) horas semanais de
trabalho, em condições precárias de segurança;
II - pelo
cumprimento de horário irregular, sujeito a plantões noturnos e chamados a
qualquer hora;
III - pela
proibição do exercício de outras atividades remuneradas, exceto as
relativas ao ensino e à difusão cultural.”
Importante consignar que vigia, à época
da edição da LCE nº. 207/79, a Constituição Federal de 1967, com as alteações decorrentes
da EC nº. 01/69. No tocante à acumulação, previa o texto que:
“Art. 99. É
vedada a acumulação remunerada de cargos e funções públicas, exceto:
I - a de juiz com um cargo de professor;
II - a de dois cargos de professor;
III -a de um
cargo de professor com outro técnico ou científico; ou
IV - a de dois cargos privativos de médico.
§ 1º Em qualquer
dos casos, a acumulação somente será permitida quando houver correlação de
matérias e compatibilidade de horários.
§ 2º A proibição
de acumulação estende-se a cargos, funções ou empregos em autarquias, emprêsas
públicas e sociedade de economia mista.
§ 3º Lei
complementar, de iniciativa exclusiva do Presidente da República, poderá
estabelecer, no interêsse do serviço público, outras exceções à proibição de
acumular, restritas a atividades de natureza técnica ou científica ou de
magistério, exigidas, em qualquer caso, correlação de matérias e
compatibilidade de horários.
§ 4º A proibição
de acumular proventos não se aplica aos aposentados, quanto ao exercício de
mandato eletivo, quanto ao de um cargo em comissão ou quanto a contrato para
prestação de serviços técnicos ou especializados.”
Pois bem. Segundo o parecer, a LCE nº.
207/79, ao dispor sobre o Regime Especial de Trabalho Policial, estabeleceu as
condições do RETP e, a partir daí, impossibilitou qualquer outra acumulação,
exceto aquela mencionada no inciso III, do artigo 44 da lei.
De acordo com regime constitucional
vigente à época, a acumulação era excepcional, restrita às hipóteses do artigo
99 da CF. Veja ademais que à Constituição Estadual de então não fazia
restrições à acumulação de cargos, limitação que existia somente no âmbito da
Constituição Federal de 1967, alterada pela EC nº. 01/69
Além da invocação do artigo 44 da LCE
nº. 207/79, fez-se menção sobre a extrema flexibilidade e irregularidade da
jornada de trabalho do servidor policial, que em situações extremas é de no mínimo 40 horas semanais. A
necessidade de compatibilidade de horários também foi considerada impeditivo
para a acumulação.
No nosso entendimento, contudo, não
poderia haver a proibição de acumular, porque não há impedimento
constitucional.
3 – DA POSSIBILIDADE DE ACUMULAÇÃO DIANTE DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988.
A Constituição Federal de 1988 tratou
da acumulação de cargos e funções, originalmente, da seguinte forma:
“Art.
37 (...)
(...)
XVI -
é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver
compatibilidade de horários:
a) a de dois cargos de professor;
b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
XVII - a
proibição de acumular estende-se a empregos e funções e abrange autarquias,
empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações mantidas pelo Poder
Público;”
Com
a EC nº. 19/1998, a acumulação passou a ser tratada do seguinte modo:
“Art. 37. (...)
(...)
XVI - é
vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver
compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso
XI: (Redação
dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
a) a de
dois cargos de professor; (Redação
dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
b) a de um
cargo de professor com outro técnico ou científico; (Redação
dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
c) a de
dois cargos privativos de médico; (Redação
dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
XVII - a
proibição de acumular estende-se a empregos e funções e abrange autarquias,
fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias,
e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público; (Redação
dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)”
Na EC nº. 34/2001, a acumulação pelos profissionais da saúde (e não só a do médico) foi contemplada na letra “c” do
inciso XVI, contido no artigo 37:
“Art. 37. (...)
XVI
(...)
c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais
de saúde, com profissões regulamentadas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº
34, de 2001)”
Vejamos portanto que, entre a redação
original do inciso XVI e a modificação que lhe deu a EC nº. 19/1998, a
acumulação era permitida para dois cargos
privativos de médico. Ora, diante dessa situação e dos argumentos expostos
no citado parecer da PGE/SP, o cargo de médico-legista, muito embora integre as
carreiras policiais no estado de São Paulo, pode ser ocupado por um engenheiro?
Não, somente pode ser ocupado exclusivamente,
privativamente por médico.
Tanto lá (idos de 1979) como cá (após a
CF/1988) a acumulação de cargos privativos de médico era constitucionalmente
aceita. Apesar disso, em 2001, a EC nº. 34 alterou novamente a disciplina do
tema e passou a prever, a partir de então, que a acumulação lícita se estendia a dois cargos
de profissionais de saúde (não mais dois cargos privativos de médico) com
profissões regulamentadas; as profissões na área de saúde tinham de ser
regulamentadas.
O parecer invocou a existência de lei
(a LCE nº. 207/79) que vedava a acumulação exceto
para o caso do magistério. No entanto, a Constituição Federal é o ápice do
ordenamento. Todas as leis e atos administrativos devem ser compatíveis com os
preceitos da CF/88. Se uma lei posterior à Constituição Federal de 1988 for com
ela incompatível, a lei sera inconstitucional. Se a lei for anterior à CF e
ainda assim apresentar-se incompatível, considera-se que a lei rejeitada pelo ordenamento justamente por afrontar a nova Constituição. Em ambos os casos, vale o texto da
Constituição Federal.
Ademais, o artigo 5º da CF dispõe que todos
“são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade (...)”. E por lei deve-se considerar
também a Constituição Federal (a Lei Maior), em cujo preâmbulo constou: “Nos, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)”.
4 – CONCLUSÃO.
À vista do exposto, s.m.j. não nos parece constitucional a
vedação de acumulação de cargos ao médico-legista que integre carreira policial.
Já na CF/67 e, depois, na CF/88 antes mesmo da EC nº. 34/2001 a acumulação de
cargos privativos de médico era constitucionalmente permitida. A
impossibilidade de acumulação deverá ser compreendida somente dentro dos
limites fixados pela CF, quais sejam: cargo técnico acumulável com um de
professor; cargo privativo de médico acumulável com outro cargo privativo de
profissionais de saúde; necessidade de compatibilidade de horários.
Quanto ao disposto no inciso LIV, do
artigo 63 da LCE nº. 207/78, somente haveria transgressão disciplinar se
houvesse a incompatibilidade de horários entre as funções exercidas, ou, se em
razão do RETP na carreira policial, houvesse a impossibilidade de médico-legista
cumprir as suas obrigações funcionais junto ao cargo que ele porventura acumule fora da seara da segurança pública.
Por último, indisponibilidades técnicas
impedem, da data deste artigo, o acesso aos julgados proferidos pelo Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo. No entanto, uma rápida consulta aos julgados
do TJ/RJ apontam que policiais militares têm obtido provimentos judiciais que
autorizam e reconhecem a possibilidade de acumulação de cargos privativos de
profissionais de saúde.
De outro lado, o acórdão proferido na
Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº. 1.541-9, do Mato Grosso do Sul, reforça a nossa convicção de que somente se consideram inacumuláveis as
situações não permitidas pela Constituição Federal, o que não é o caso dos
médico-legista.
** Informação final: o Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, conforme apurado, vem reconhecendo a possibilidade de acumulação lícita a servidores
policiais na linha do raciocínio acima exposto.
[1] Disponível em: http://www.recursoshumanos.sp.gov.br/pareceres/pareceres%20acumulacao/PA_148_1999.pdf,
acessado em 03/06/2013.