"Carta Aberta aos 'Terceirizados' e à Comunidade Jurídica": quando o Juiz compreende perfeitamente o papel do Direito e da Justiça na socidade da qual faz parte.
O texto abaixo foi
escrito pelo Juiz do Trabalho do TRT de Campinas e Professor de Direito do
Trabalho da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Jorge Luiz Souto
Maior. O Magistrado (com "M"!) já foi objeto de longa e
depreciativa reportagem da revista Exame (Editora Abril), publicação
voltada para o empresariado e com linha editorial marcada pela defesa
aberta do capitalismo e exacerbado liberalismo econômico. A revista Exame
até apelidou Souto Maior de "O juiz Robin Hood". Para entender os
motivos, é imprescindível ler a excepcional Carta escrita por Souto Maior.
Carta Aberta aos
“Terceirizados” e à Comunidade Jurídica
* Jorge Luiz Souto Maior
A sociedade brasileira
está tendo a oportunidade de ver o que representa o processo de terceirização,
sobretudo no setor público, a partir da realidade vivenciada – mais uma vez,
infelizmente, na Universidade de São Paulo. Esta é uma situação muito triste,
mas, ao mesmo tempo, grandiosa, ao menos por quatro aspectos: primeiro, porque
os trabalhadores tercerizados estão tendo visibilidade (logo eles que estão por
aí nos ambientes de trabalho como seres invisíveis); segundo, porque eles
próprios estão se reconhecendo como cidadãos e estão demonstrando possuir,
ainda, capacidade de indignação frente à injustiça; terceiro, porque os demais
trabalhadores e cidadãos estão tendo a chance de exercitar um sentimento
essencial da condição humana, a solidariedade; e, quarto, porque aos
profissionais do direito está sendo conferido o momento para questionar os
aspectos jurídicos que conduziram à presente situação. O fato é que a
terceirização é, antes de tudo, um fenômeno criado pelo direito, tendo,
portanto, o direito toda a responsabilidade quanto às injustiças que tal
fenômeno produz.
A Universidade de São
Paulo, como tantos outros entes públicos e privados, achou por bem contratar
uma empresa para a realização dos serviços de limpeza no âmbito de suas
unidades de ensino. E se assim fez é porque considerou que o direito lhe
permitia fazê-lo. Tratando-se de um ente público a contratação se fez, por
determinação legal, por meio de licitação.
Ocorre que,
respeitando-se a lógica do procedimento em questão, quem sai vencedor da
licitação é a empresa que oferece o menor preço – não sendo muito diferente o
que se passa no âmbito das relações privadas.
Pois bem, o que se extrai
desse contexto é a conseqüente lógica da precarização das garantias dos
trabalhadores, pois há a transferência da responsabilidade de uma empresa
economicamente sólida ou de um ente público para uma empresa que não possui,
necessariamente, nenhum lastro econômico e cuja atividade não vai além de
organizar a atividade de alguns trabalhadores e lhes repassar o valor que lhe
seja pago pelo ente contratante dos serviços, o qual, ademais, não faz mesmo
questão de saber se o valor pago vai, ou não, fragilizar o ganho dos
trabalhadores, pois que vislumbra destes apenas o serviço prestado, sendo certo
que considera, por óbvio, a utilidade de obter esse serviço pelo menor preço
possível.
Do ponto de vista dos
trabalhadores terceirizados as conseqüências dessa situação vão muito além da
mera precarização das garantias do trabalho, significando mesmo uma forma de
precarização da sua própria condição humana, vez que são desalojados do
contexto da unidade em que prestam serviços. Os “terceirizados”, assim,
tornam-se em objetos de contratos e do ponto de vista da realidade,
transformam-se em seres invisíveis. E isso não é mera figura de retórica, pois
a maior forma de alguém ver reduzida a sua condição de cidadão é lhe retirar a
possibilidade concreta de lutar pelo seu direito e é isso, exatamente, o que
faz a terceirização.
Vejamos esta afirmação a
partir do exemplo da USP. O ente público contratou a empresa União, para uma
prestação de serviços durante 05 (cinco) anos e o fez a partir do pressuposto
do menor preço. Para extração de seu lucro, a empresa União, diante do valor
que lhe era pago mensalmente, em diversas ocasiões deixou de cumprir os
direitos dos trabalhadores e a Universidade de São Paulo bem sabia disso.
A situação em questão
está documentada no Termo de Ajuste de Conduta n. 94, firmado pela referida
empresa perante o Ministério Público do Trabalho (PRT – 2ª. Região), em 2007,
pelo qual se comprometeu a fornecer vale-transporte aos trabalhadores, a
efetivar os depósitos do FGTS e a recolher a contribuição previdenciária, assim
como no Inquérito Civil, instaurado no âmbito do Ministério Público do Trabalho
(PRT – 2ª. Região), em novembro de 2010, para apurar novas irregularidade
cometidas pela empresa em questão com relação aos trabalhadores que executam
seus serviços na USP, sobretudo no que tange denúncias de assédio moral,
ameaças aos empregados e transferências com propósito de retaliação, seguindo,
inclusive, reportagem elaborada no próprio “Jornal do Campus” e no Termo de
Ajuste de Conduta n. 2.139, firmado também junto ao Ministério Público do
Trabalho (PRT – 2ª. Região), em abril de 2011, desta feita para que a empresa
União assumisse o compromisso de respeitar o intervalo legal de 11 (onze) horas
entre duas jornadas de trabalho dos trabalhadores “terceirizados” em atividade
na USP.
Ou seja, o que se passou
a partir de 05 de abril de 2011, quando os trabalhadores da empresa União já
estavam cumprindo aviso prévio, em razão do término do contrato de prestação de
serviços entre dita empresa e a USP, vencido o prazo de 05 (cinco) anos, já era
uma tragédia anunciada. Ora, como uma empresa que durante todo o curso do
contrato de prestação de serviços se viu, de certo modo, “obrigada”, diante do
valor do que lhe era repassado pela USP, nos termos do contrato, a eliminar
direitos dos trabalhadores, tais como “vale-transporte”, teria condições
financeiras de arcar com os custos legais do término de 400 relações de
emprego? E olha que os exemplos apresentados de descumprimento da legislação
não indicam as situações individualizadas, que de fato existem, de supressão de
férias e exercício de trabalho em horas extraordinárias, fato que, ademais, é
possível razoavelmente supor a partir do próprio conteúdo do Termo de Ajuste de
Conduta, firmado em abril de 2011 (acima citado), pois para que haja supressão
do intervalo de 11 horas, ou o empregado trabalhava além de oito horas por dia
ou tem que se submeter a um revezamento de horário que pode lhe integrar a novo
regime de limitação da jornada.
Cumpre esclarecer, ainda,
que, segundo versão da Empreza Limpadora União, expressa em nota pública, a
Universidade de São Paulo já estava lhe pagando apenas 70% da nota de serviços
há quatro meses e, em março/11, já tinha obtido decisão judicial, de caráter
liminar, conferindo-lhe o direito ao recebimento integral da fatura, o que não
teria sido respeitado pela Universidade.
Pois bem, com todo esse
imbróglio, o que se verifica, na seqüência, é a utilização do Direito para,
enfim, acabar de fulminar com os terceirizados!
O fato é que a USP já
sabia, há muito, por óbvio, que a situação financeira da empresa prestadora não
lhe permitiria arcar com os custos das cerca de 400 rescisões. Então, alguns
meses antes do término do contrato da prestação de serviços, por oportuno,
“descobriu” que a empresa prestadora tinha dívida com a União Federal (inscrita
no CADIN) e, assim, deixou de repassar parte (precisamente, 30%) da prestação
mensal que devia à prestadora. Mas, o fez, certamente, como forma de
argumentar, mais adiante, apegando-se no novo entendimento do Supremo Tribunal
Federal a respeito da terceirização no âmbito público, que não poderia ser
responsabilizada subsidiariamente pelas dívidas de natureza rescisória dos
empregados da Empreza União (e mesmo com relação a todos demais direitos que
restassem pendentes, considerando a situação individualizada dos trabalhadores
terceirizados), pois que teria agido com a devida atenção ao fiscalizar a
atuação da empresa de terceirização, tanto que logo que soube de sua condição
de inadimplente perante o Estado tratou de reter o pagamento que lhe era
devido...
Ora, só não querendo
enxergar para não perceber a estratégia jurídico-econômica estabelecida pela
Administração da Universidade no caso, tanto que sequer se dispôs a dizer,
publicamente, quando, afinal, fez essa grande “descoberta”. De todo modo, ainda
que a descoberta tenha ocorrido, de fato, após a Universidade ter pago 70% da
prestação à empresa prestadora, o fato concreto é que pelo próprio conteúdo do
contrato é possível saber que lhe estava embutida uma lógica de supressão de
direitos.
E, ademais, segundo
versão da Empreza União, a Universidade vem adotando tal procedimento há quatro
meses e, assim, mesmo com o conhecimento da dívida, tem pago 70% do valor da
fatura. Mas, por que 70%? Qual a explicação jurídica para esse percentual?
Conforme os dados que
vieram a público, a USP depositou em juízo 30% do valor da prestação mensal
devida à empresa prestadora pelos serviços contratados de limpeza, que inclui
mão-de-obra de cerca de 400 empregados e material de limpeza. Os 30%
representaram, conforme consta do processo n. 0008336-48.2011.8.26.0053, com
trâmite na 8ª. Vara da Fazenda Pública do Estado de São Paulo, no qual o
depósito foi realizado, a importância de R$146.493,43. Isso significa dizer que
o valor total da prestação mensal é de R$488.311,43, o que se demonstra totalmente
insuficiente para o pagamento sequer dos cerca de 400 empregados, ainda mais se
considerarmos que do pagamento em questão a empresa prestadora retira ainda
valores necessários à compra de material de limpeza, tributos e, por óbvio, o
seu lucro. A matemática é implacável: o salário desses trabalhadores é, em
geral, o salário mínimo, qual seja, R$545,00 e segundo o professor da FEA/USP,
José Pastore, “Em decorrência da legislação, as empresas pagam cerca de 102%
sobre o valor do salário” (Emprego e encargos sociais, artigo publicado em O
Jornal da Tarde, 09/02/1994), acrescentando, ainda, que “O custo da rescisão do
contrato de trabalho é elevado, podendo chegar a 2 salários (em alguns casos,
até mais).” (Idem, Relações de trabalho - flexibilizar para sobreviver, artigo
publicado em A Folha de São Paulo, 21/04/1990). Assim, chegar-se-ia ao custo
total mensal de R$440.360,00, a título exclusivo de mão-de-obra, isto sem
considerar a custo do material de limpeza para 10 (dez) unidades, os tributos e
o lucro da empresa prestadora, além do custo adicional das rescisões.
Resta claro, pois, que o
desrespeito aos direitos trabalhistas está inserido no contexto da
terceirização operada, o que, aliás, não é um privilégio da situação em exame.
A precarização trata-se, como se verifica em diversas outras experiências, da
própria lógica do fenômeno, proporcionando, até mesmo, o exercício, de forma
natural, da perversidade, pois, afinal, como se verifica na situação em
comento, não pode mesmo ser outro o sentimento que inspira a Administração da
Universidade ao engendrar uma “saída” jurídica para mais adiante tentar se
desvencilhar de qualquer obrigação perante os direitos dos trabalhadores
terceirizados, não tendo, para tanto, a menor preocupação com o que se passará
na vida dessas pessoas sem o concreto recebimento do salário e a perda do
emprego seguida do não recebimento de verbas rescisórias. Se pessoas vão, de
fato, passar necessidade isso não lhe importa; o que vale mesmo é defender o
“interesse público” de sugar as forças de pessoas sem qualquer comprometimento
jurídico ou humanístico.
Cumpre não olvidar que
estamos falando de pessoas que recebem salário mínimo, cujo montante, portanto,
é estritamente alimentar.
E sabem o que dirão os
Administradores da USP? Dirão que estão agindo em conformidade e nos limites da
lei e que não podem, “infelizmente”, por mais que compreendam os dilemas
humanos dos “terceirizados”, fazer algo a respeito. Dirão, ainda, que o que
podiam fazer já fizeram, que foi efetuar o pagamento do valor contratualmente
fixado, mediante depósito judicial. A empresa prestadora, por sua vez, dirá que
o problema não é seu, pois só não efetuou o pagamento do salário por conta do
procedimento adotado pela Universidade...
No jogo de empurra, resta
aos terceirizados esperar a boa vontade de alguém, que não virá! O final da
história já se sabe: se receberem os salários, sabe-se lá quando, não
receberão, por certo, a integralidade de suas verbas rescisórias e se verão
obrigados a ingressar na Justiça para o recebimento de tais valores, o que, com
otimismo, deve levar dois ou três anos, a não ser que aceitem receber menos do
que tem direito mediante um “acordo”, no qual conferirão “quitação” de todos os
seus demais eventuais direitos, até porque, como apregoa o Supremo Tribunal
Federal, “conciliar é legal”. E tudo se acertará, sem muitos incômodos...
Afinal, por que se preocupar tanto com direitos de terceirizados que já estão
acostumados com essa situação?
Por oportuno, vale o
registro de que alguns empregados terceirizados, que vivenciaram a mesma
situação, em 2006, ao término do contrato de outra empresa de terceirização,
não receberam até hoje os seus direitos, como se verifica no Processo nº
01654200501802000, com trâmite no TRT da 2ª. Região (18ª. Vara), no qual são
partes: Reclamante: Érica Rodrigues da Silva e Reclamadas: Bioclean Serviços
Ltda. e IPEN - Instituto de pesquisas Energéticas e Nucleares (Autarquia
Estadual vinculada à USP). A reclamação trabalhista em questão, movida em 2005,
ainda não resultou no recebimento de qualquer valor por parte da reclamante,
embora a sentença lhe tenha sido favorável, sendo mantida pelo Tribunal
Regional. Ocorre que o IPEN interpôs Recurso de Revista, seguido de Agravo de
Instrumento, para tentar levar o processo ao Tribunal Superior do Trabalho,
talvez na tentativa de se ver livre de qualquer obrigação perante à Sra. Érica
Rodrigues da Silva, vislumbrando, até mesmo, no caso de insucesso, recorrer ao
Supremo Tribunal Federal, seguindo a “moderna” jurisprudência daquela Corte a
respeito do assunto. A propósito, só para constar: a empresa Bioclean Serviços
Ltda. possui processo de Falência (n. 0834106-14.2007.8.26.0000/02 -
000.05.092909-7/00002), em trâmite na 2ª Vara de Falência e Recuperações
Judiciais...
Assim, não se pode deixar
de considerar que há um grande risco, na verdade, uma quase certeza, de que os
trabalhadores terceirizados jamais receberão os seus direitos, pois segundo o
entendimento de “vanguarda” do Supremo Tribunal Federal a respeito da questão,
inexiste responsabilidade do ente público pelas dívidas trabalhistas das
empresas prestadoras de serviço na terceirização, a não ser nas situações em
que se consiga fixar, em concreto, a culpa do ente público no que tange ao
inadimplemento das obrigações trabalhistas. Só que a considerar a estratégia
utilizada pela USP, de depositar em juízo parte dos valores que devia repassar
à empresa terceirizada, sob o argumento de que esta tinha dívidas com o Estado,
não é difícil imaginar a dificuldade que os trabalhadores terão em apontar a
culpa da Universidade.
É interessante perceber
que esse efeito fático, de deixar os terceirizados literalmente na mão,
provocado pela decisão do STF na já famosa ADC n. 16, tem sido encarado como
uma “vitória” pelos entes públicos, como anuncia a nota da Procuradoria Geral
do Distrito Federal: "A Procuradoria-Geral do Distrito Federal obteve
vitória hoje à tarde, em julgamento perante o Supremo Tribunal Federal,
referente à Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16, referente ao artigo
71, da Lei nº 8.666/93. A decisão afasta em definitivo a responsabilidade do
Poder Público em relação a qualquer débito trabalhista e fiscal das empresas
contratadas. Importa destacar que esta decisão implica a economia de milhões de
reais para os cofres distritais, já que existem mais de 4 mil ações judiciais
em quais o Distrito Federal foi condenado a arcar com dívidas de empresas que
prestaram serviços ao ente federativo. A importância do tema se revela na
medida em que todos os estados-membros, a União e diversos municípios se uniram
à iniciativa pioneira do DF em propor a ADC."
Aliás, é mesmo
impressionante a quantidade de entes públicos que interferiram como “amigos” do
Distrito Federal na referida Ação Direta de Constitucionalidade acerca do art.
71, da Lei n. 8.666/93, quais sejam: Departamento de Trânsito do Estado do
Pará; Município de Belo Horizonte, Município de Jundiaí/SP, Município de
Arcoverde, Município do Rio de Janeiro, Município de São Paulo, Município de
Juiz de Fora, Município de Santo André, Município de Goiânia, Município de Boa
Vista, Município do Recife, Município de Belém, União Federal, Estados do
Amazonas, Alagoas, Bahia, Ceará, Goiás, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso,
Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do
Norte, Rio de Janeiro, Rondônia, Sergipe, São Paulo e Tocantins).
Essa situação revela que,
de fato, estão todos unidos contra os “terceirizados”, pois, afinal, segundo se
quer acreditar, talvez seja a concessão de direitos aos terceirizados o que
trava o desenvolvimento do país...
Não pode haver dúvida: o
entendimento do Supremo será utilizado para enterrar, de vez, os direitos dos
trabalhadores terceirizados. E se dirá: não há injustiça nenhuma nisso, pois
tudo tem o respaldo do Direito!
O problema é que não tem.
Como dito pelo Ministro
Peluso, na mesma Ação Direta de Constitucionalidade, a terceirização no serviço
público não tem amparo constitucional. De fato, não há um dispositivo
constitucional sequer a autorizar o ingresso na realização de serviços
essenciais ao ente público se não for por meio de ingresso por concurso
público, salvo em situações de excepcional interesse público em caráter
temporário.
Dizem o art. 37 e seus
incisos I e II da CF: “A administração pública direta e indireta de qualquer
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade
e eficiência e, também, ao seguinte: I - os cargos, empregos e funções públicas
são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em
lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; II - a investidura em cargo
ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou
de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou
emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em
comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.”
Têm-se, assim,
expressamente, fixados na Constituição os requisitos antes mencionados, para a
execução de serviços públicos: impessoalidade; publicidade; moralidade; acesso
amplo; concurso público; tudo para evitar os defeitos por demais conhecidos do
favorecimento, do nepotismo e da promiscuidade entre o público e camadas
privilegiadas do setor privado.
Resulta desses
dispositivos que a execução de tarefas pertinentes ao ente público deve ser
precedida, necessariamente, de concurso público. Nestes termos, a contratação
de pessoas, para prestarem serviços à Administração, por meio de licitação fere
o princípio do acesso público. Assim, se, por exemplo, algum município quiser
contratar um servidor, deverá fazê-lo mediante realização de concurso público
de provas e títulos, que será acessível a todos os cidadãos, respeitados os
requisitos pessoais exigidos em termos de qualificação profissional, por acaso
existentes e justificados em razão do próprio serviço a ser realizado. Ao se
entender que o mesmo município possa realizar esse mesmo serviço por meio de
uma empresa interposta, estar-se-á, simplesmente, dando uma rasteira no
requisito do concurso público e mais permitindo o favorecimento de uma pessoa
jurídica, que, no fundo, estará recebendo dinheiro público, sem uma
justificativa para tanto.
Claro, se poderá dizer
que há previsão, também na Constituição, no inciso XXI, do mesmo artigo 37, no
sentido de que o ente público poderá contratar serviços mediante processo de
licitação: “XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras,
serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação
pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com
cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições
efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências
de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento
das obrigações.”
É tão óbvio que a
expressão “serviços” contida no inciso XXI não pode contrariar a regra fixada
nos incisos I e II, que chega mesmo a ser agressivo tentar fundamentar o contrário.
Ora, como já dito, se um ente público pudesse contratar qualquer trabalhador
para lhe prestar serviços por meio de uma empresa interposta se teria como
efeito a ineficácia plena dos incisos I e II, pois que ficaria na conveniência
do administrador a escolha entre abrir o concurso ou contratar uma empresa para
tanto, a qual se incumbiria de escolher, livremente, a partir dos postulados
jurídicos de direito privado, as pessoas que executariam tais serviços.
O inciso XXI,
evidentemente, não pode ter tal significação. Tomando o artigo 37 em seu
conjunto e mesmo no contexto do inciso XXI, em que se insere, o termo
“serviços” só pode ser entendido como algo que ocorra fora da dinâmica
permanente da administração e que se requeira para atender exigência da própria
administração, como por exemplo, a implementação de um sistema de computador,
ou a preparação dos servidores para trabalhar com um novo equipamento. Para
esses serviços, o ente público poderá contratar, por prazo certo, uma empresa
especializada, valendo-se, necessariamente, de processo de licitação.
Não se pode entender, a
partir da leitura do inciso XXI, que o ente público, para implementar uma
atividade que lhe seja própria e permanente, possa contratar servidores por
meio de empresa interposta, até porque, se pudesse, qual seria o limite para
isto? Afinal, serviço é o que realizam todos os que trabalham no ente público.
O que fazem os juízes, por exemplo, senão a prestação de serviços ao
jurisdicionado?
Costuma-se dizer que a
“execução de tarefas executivas” , como, por exemplo, os serviços de limpeza,
podem ser executados por empresa interposta, baseado no que prevê um decreto de
1967, número 200 e em uma Lei de 1970, número 5.645. Em primeiro lugar, um
decreto e uma lei ordinária não podem passar por cima da Constituição, ainda
mais tendo sido editados há mais de 40 anos atrás. Segundo, a Constituição não
faz qualquer distinção quanto aos serviços para fins da necessidade de concurso
público. Mesmo a contratação por tempo determinado, para atender necessidade
temporária de excepcional interesse público, deve ser precedida de pelo menos
um processo seletivo. E, terceiro, como justificar que os serviços de limpeza
possam ser exercidos por uma empresa interposta e não o possam outros tipos de
serviço realizados cotidianamente na dinâmica da administração, como os
serviços burocráticos de secretaria e mesmo todos os demais?
Se nos “serviços” a que
se refere o inciso XXI pudessem ser incluídos os serviços que se realizam no
âmbito da administração de forma permanente não haveria como fazer uma
distinção entre os diversos serviços que se executam, naturalmente, na dinâmica
da administração, senão partindo do critério não declarado da discriminação.
Mas, isto, como se sabe, ou se deveria saber, fere frontalmente os princípios
constitucionais da não discriminação, da isonomia, da igualdade e da cidadania.
Vale a pena, por isto,
relembrar alguns textos constitucionais que devem ter incidência neste assunto,
pois não é somente um pretenso interesse do administrador que pode ser
considerado:
Art. 1º: A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: (....) III - a dignidade da pessoa humana;
Art. 3º: Constituem
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (....) IV - promover
o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
Art. 5º: Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes: (....) XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos
direitos e liberdades fundamentais;
Art. 7º: São direitos dos
trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua
condição social: (....) XXXII - proibição de distinção entre trabalho manual,
técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos;
Retomando, a
normatividade interna e o aspecto da abrangência da expressão “serviços”,
contida no inciso XXI, do art. 37, da Constituição, interessante verificar que
a própria Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, que regula o processo de
licitação, considera, para fins da referida lei, “Serviço - toda atividade
destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais
como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação,
reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade,
seguro ou trabalhos técnico-profissionais” (inciso II, do art. 6o.),
pressupondo o seu caráter temporário, conforme previsão do art. 8o.: “A
execução das obras e dos serviços deve programar-se, sempre, em sua totalidade,
previstos seus custos atual e final e considerados os prazos de sua execução.”
Verdade que na mesma lei,
encontra-se o inciso II, do artigo 57, que ao dispor do limite da duração dos
contratos firmados com a Administração por meio de processo licitatório faz
menção, excepcionando a regra, “à prestação de serviços a serem executados de
forma contínua” à Administração. Mas, em primeiro lugar, referido dispositivo
foi inserido na Lei em 1998, alterando inovação do texto legal realizada, em
1994, talvez no sentido de legitimar algumas práticas de terceirização já
existentes no setor público, só que, evidentemente, não há legitimação de uma
situação fática que contrarie a Constituição. Como a Constituição, como visto,
determina que os serviços atinentes à dinâmica da Administração sejam
realizados por servidores concursados, não será uma lei ordinária que dirá,
validamente, o contrário.
Assim, adotando-se o
princípio da interpretação em conformidade com a Constituição, o serviço
contínuo, referido no inciso II, do art. 57, da Lei n. 8.666/93, só pode ser
entendido como um serviço que se preste à Administração, para atender uma
necessidade cuja satisfação exija alta qualificação de caráter técnico,
requerendo, portanto, por meio de processo licitatório, a contratação de uma
empresa especializada e que, embora permanente sua execução, se inclua na
lógica do contexto de sua dinâmica organizacional apenas esporadicamente, como,
por exemplo: a manutenção de elevadores; o transporte de valores em vultuosa
quantia... Para além disso ter-se-á uma flagrante inconstitucionalidade.
Verdade que o artigo 175,
também da Constituição, fornece ao administrador a possibilidade de escolha no
que se refere aos serviços públicos. Diz o referido texto constitucional: “
Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de
concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços
públicos.”
No entanto, não se há
confundir os “serviços” mencionados no inciso XXI, com serviço público. O
serviço público, como explica Celso Antônio Bandeira de Mello, “é toda
atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à
satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos
administrados” .
Os “serviços públicos”,
mencionados no artigo 175, têm, portanto, natureza diversa dos “serviços” a que
se referem o inciso XXI, do art. 37. Os serviços públicos são prestados aos
administrados e não à própria administração. A execução desses serviços
públicos pressupõe, por óbvio, a criação de uma estrutura que seja própria a
consecução de seus fins e que requer, portanto, o exercício de alguma atividade
de natureza empresarial, que o Estado pode realizar por si ou mediante outorga
a um ente privado, mediante licitação. Não se concebe, pela regra do art. 175,
que o Estado transfira para o particular um serviço atinente à sua própria
organização interna ou mesmo um serviço que se destine à população, mas que não
requeira nenhum tipo de organização de caráter empresarial, pois neste último
caso, a interposição do ente privado se faria apenas para possibilitá-lo
explorar, economicamente, a atividade pública, sem oferecer nada em troca. Esta
última questão pode ser mais polêmica, concordo, mas de todo modo não pode
haver dúvida de que o art. 175 não é fundamento para a mera terceirização de
serviços no âmbito da administração pública.
Contra a “tese” que se
está sustentando neste texto pode-se, ainda, mencionar o disposto no artigo 247
da Constituição: “As leis previstas no inciso III do § 1º do art. 41 e no § 7º
do art. 169 estabelecerão critérios e garantias especiais para a perda do cargo
pelo servidor público estável que, em decorrência das atribuições de seu cargo
efetivo, desenvolva atividades exclusivas de Estado.”
Assim, segundo a própria
Constituição haveria uma distinção entre as atividades desenvolvidas no âmbito
da Administração, sendo algumas consideradas “atividades exclusivas de Estado”
e, outras, conseqüentemente, não.
Sim, isto é
inquestionável, diante dos inequívocos termos do dispositivo constitucional. No
entanto, abstraindo a dificuldade do que seria, propriamente, atividade
exclusiva de Estado, o fato é que a diferenciação feita pela Constituição diz
respeito, unicamente, aos critérios específicos para a “perda do cargo”, não
tendo, portanto, nenhuma influência no aspecto do ingresso no serviço público,
do que se trata a questão posta em discussão. Aliás, é o próprio artigo 247 que
acaba reforçando a idéia de que o ingresso de todos os servidores da
Administração, independente da tarefa que exerçam, se dê por intermédio de
concurso público, pois, do contrário, não haveria sentido em trazer a distinção
quantos aos critérios para a perda do cargo.
Conclusivamente, não há
em nosso ordenamento constitucional a remota possibilidade de que as tarefas
permanentes e constantes que façam parte da dinâmica administrativa do ente
público serem executadas por trabalhadores contratados por uma empresa
interposta. A chamada terceirização, que nada mais é que uma colocação da força
de trabalho de algumas pessoas a serviço de outras, por intermédio de um
terceiro, ou seja, uma subcontratação da mão-de-obra, na esfera da
Administração Pública, trata-se, portanto, de uma prática flagrantemente
inconstitucional.
E aí é que mora a maior
gravidade do presente assunto. Desrespeita-se, frontalmente, a Constituição ao
se efetuar a contratação de trabalhadores, no setor público, por intermédio da
terceirização e, depois, constatada a precarização dos direitos desses
trabalhadores, que está na própria lógica do fenômeno, busca-se permitir ao
ente público valer-se do “direito” para se eximir de responsabilidade, como se
este fosse, de fato, o interesse público. Mas, o que sobressai não é a razão
jurídica e sim a pura maldade, que tem, pesarosamente, adquirido inúmeros
adeptos no mundo do “direito”.
Voltando ao caso da USP,
sabem o que a Administração da Universidade promoveu no momento em que os
trabalhadores terceirizados paralisaram suas atividades como forma política de
pleitearem o recebimento de seus salários? A USP contratou, em caráter de urgência,
outra empresa de prestação de serviços, demonstrando, claramente, como estava
“preocupada” com a situação humana dos terceirizados! E as contradições, então,
emergem ainda mais. Ora, se o argumento da terceirização dos serviços de
limpeza parte do pressuposto de que a atividade de limpeza não é essencial à
dinâmica da Universidade, como a Universidade não consegue prosseguir suas
atividades, durante um só dia, sem o serviço de limpeza?
Cumpre observar que, em
concreto, o que a Universidade fez foi frustrar o direito de greve dos
trabalhadores terceirizados, sendo certo que a lei de greve impede a
contratação de trabalhadores durante o período da paralisação dos serviços. Bem
verdade que, do ponto de vista estritamente legal, os terceirizados não estavam,
tecnicamente, em greve, vez que o movimento não foi deflagrado pelo sindicato
que os representa. Isso, no entanto, não retira a legitimidade do movimento,
pois, ademais, os terceirizados não estavam em busca de melhores condições de
trabalho, que é o objeto de uma greve, e sim exercendo o direito de não
cumprirem a sua obrigação contratual de prestar serviços enquanto as partes
contrárias não cumprissem a parte que lhes cabia, que era a do pagamento do
salário em face de um serviço já executado.
Resumo da ópera: os cerca
de 400 trabalhadores terceirizados da USP não receberão seus salários e
perderão seus empregos sem o conseqüente recebimento das verbas rescisórias,
isto sem falar em outros direitos que possam não lhes ter sido pagos no curso
das respectivas relações de emprego. Essa situação, que, ademais, representa a
história de milhões de trabalhadores terceirzados brasileiros, não agride a
consciência de ninguém que não se sinta inserido nela. Aliás, a perspectiva de
análise sobre o tema em questão tem sido a do tomador dos serviços, unindo-se
as inteligências nacionais a serviço da proteção do Estado (Executivo,
Legislativo e Judiciário) em face dos “ameaçadores” direitos dos terceirizados.
Talvez o que falta, para
uma melhor análise jurídica do fenômeno, seja uma efetiva compreensão do que se
passa na vida dessas pessoas e quem sabe a presente greve dos terceirizados da
USP possa se constituir uma oportunidade para tanto. Com vistas a contribuir
para essa reflexão, permitam-me fazer o relato da recente experiência que vivi
em “meio dia como terceirizado”.
No dia 11 de abril,
diante da notícia de que os trabalhadores terceirizados da USP haviam entrado
em greve, compareci no Campus para compreender a situação. No local, fui
convidado pelos trabalhadores para integrar uma comissão de 10 (dez)
trabalhadores que queriam conversar com representantes da USP, para que lhes
fosse passada uma posição a respeito de seus salários e demais direitos. A
comissão restou formada por volta das 8h, quando, então, foi transmitida a
informação aos representantes da Universidade o propósito da comissão.
Pediram-nos, em resposta, que aguardássemos e assim fizemos...
Enquanto isso, fui
conhecendo um pouco mais aquelas pessoas e as suas dificuldades. Muitos estavam
mesmo desesperados, sem saber como fariam se os salários não lhes fossem pagos
o quanto antes. Eles não se conformavam com a situação. Não entendiam como
aquilo poderia estar ocorrendo dentro da maior Universidade do país. Sua
indignação advinha, sobretudo, do fato de que eram constantemente assediados
pelos supervisores, que lhes exigiam, com bastante rigor, a execução regular de
suas tarefas e o cumprimento de horários e demais obrigações e, agora, os
mesmos rigores não serviam ao seu empregador e à Administração da Universidade
quanto ao respeito de seus direitos. Diziam, com freqüência: “Comparecemos aqui
todos os dias a partir das 5h e 30’, cumprimos todas as nossas tarefas sob
ameaças e coações de todo tipo, e, agora, eles simplesmente não pagam nossos salários
nem aparecem para nos dar explicações!” Os supervisores, aliás, estavam por
ali, passando as mesmas dificuldades dos demais...
Conheci histórias de
diversos deles, relatando a supressão de direitos, como a que atingia alguns
que se encontravam já há dois anos sem tirar férias, mas a de uma, em especial,
me chamou a atenção. Esta trabalhadora (a Sra. Moura) estava atuando na USP, na
condição de faxineira, há 17 (dezessete) anos, tendo passado por diversas
empresas de prestação de serviços. Ela não se via, por óbvio, como empregada da
empresa de prestação de serviços, que era plenamente transitória em sua relação
com a USP e cujos proprietários sequer conhecia. O seu vínculo era com a
Universidade, a qual conhece como poucos, conforme os relatos que me fez...
Passei a perceber, então, que este era um sentimento comum. Em geral, eles
consideravam que faziam parte da Universidade, com a peculiaridade marcante de
que não se vinculavam a uma unidade específica, conhecendo a dinâmica de várias
delas. Claro, a visão deles era periférica, já que não tinham, em quaisquer das
unidades, uma reciprocidade. Em concreto, os servidores, professores e alunos
dos vários locais onde trabalhavam não lhes conheciam. Seu contato era restrito
com os responsáveis pelo serviço de limpeza.
A conversa ia bem, até
que percebi que já estávamos há mais de três horas esperando. Dirigi-me, então,
acompanhado dos membros da comissão, à entrada do prédio da Administração da
Universidade e qual não foi minha surpresa ao ver a montagem de um forte
aparato de proteção contra a nossa presença no local. Queríamos entrar para
ficar na sala de espera até o momento de sermos atendidos, pois já estávamos
cansados de ficar sentados no chão do lado de fora do prédio, mas as portas
estavam fechadas para nós, mediante a presença de seguranças. Pouco adiantava
eu dizer que aquele era um prédio público e que eu e “meus companheiros”
tínhamos solicitado uma audiência. Os seguranças pouco se importavam. Tinham
ordens expressas para impedir a nossa entrada e o fariam de forma violenta se
fosse necessário, pelo que pude perceber quando ameacei forçar um pouco a
barra...
Em meio a tudo isso,
servidores da Unidade em questão entravam para trabalhar e sequer nos olhavam.
Era como se não existíssemos e quando percebiam nossa presença sentiam-se
incomodados. Lá pelas tantas, já um pouco cansado, indaguei a um servidor, que
buscava entrar no prédio, se ele não se importava com o que estava se passando
com os terceirizados. Ele disse-me, simplesmente, que “as pessoas hoje em dia
estão muito individualistas...”
Depois de muita
insistência, veio uma ordem lá de dentro no sentido de que eu poderia entrar.
Quando me dirigi à entrada, junto com um trabalhador terceirizado que ainda
estava comigo (o Sr. André), pois os demais já haviam desistido, fomos
novamente barrados, sob alegação do segurança de que eu poderia entrar, mas o
terceirizado não. Aquela discriminação doeu forte e decidimos não entrar...
Passadas mais de 05
(cinco) horas, resolveram nos atender. Exigiram, no entanto, uma redução do
número dos membros da comissão para três e indicaram, estrategicamente, um
local para tanto bastante distante daquele onde nos encontrávamos. Aceitamos
assim mesmo e quando, enfim, fomos atendidos, as explicações foram aquelas já
relatadas acima, as quais, duas horas depois, repassamos aos demais
trabalhadores (e fui, pessoalmente, questionado, com certo veemência, pelos
manifestantes, como se parte da culpa por aquela situação fosse minha...)
Foram, assim, cerca de 07 (sete) horas de espera para ter informação sobre o
problema e os esclarecimentos foram, traduzidos para o bom português, no
sentido de que a Universidade não poderia fazer nada por eles. Não havia
nenhuma perspectiva de que os seus salários fossem efetivamente pagos.
Enquanto isso, alguns
alunos e professores de uma dada unidade começaram a se mobilizar para manter a
Faculdade limpa para o devido funcionamento, buscando demonstrar que os meus
companheiros não faziam falta. Eles percebiam isso e se incomodavam
profundamente, como se incomodavam, também, ao ver outros trabalhadores
chegando para ocuparem os seus lugares, mediante contratação da nova empresa de
prestação de serviços que fora chamada, em regime de urgência, pela
Universidade. Esse autêntico desprezo pela sua causa lhes doía ainda mais
forte...
Extenuado, por volta das
17h, fui embora. Mas, cumpre perceber. Eu fui embora e meu “meio dia como
terceirizado” teve fim. Cheguei em casa e almocei. Meus filhos já haviam
almoçado e estavam cuidando dos seus interesses. Minha conta-corrente tinha
saldo mais que suficiente para as minhas necessidades e da minha família. Ou
seja, bastou que eu me sentisse cansado para que deixasse aquela realidade.
Mas, e os terceirizados? Eles, simplesmente, não tinham condições de fazer o
que eu fiz, vez que estavam condenados a continuar vivendo aquela que é,
afinal, a sua vida, sem possibilidade concreta de fuga. No dia em que escrevo
este texto, madrugada do dia 18 (segunda-feira), ou seja, uma semana depois, a
situação daquelas pessoas só piorou e imagino como estejam se sentindo...
Consigo visualizar a situação porque sei seus nomes, conheço seus rostos e um
pouco de suas vidas, o que, ademais, tem me impedido de fingir que nada esteja
se passando de muito grave com aquelas pessoas.
Mas, minha angústia
aumenta ainda mais quando tenho que admitir que é, afinal, a forma como o
Direito tem sido aplicado o que dá alimento para essa situação. Como defensor
do Direito do Trabalho e das instituições jurídicas estatais, vendo essa
realidade justificada pelo Direito, o que sinto é uma profunda tristeza e a
minha única vontade é a de terminar esse texto abominando as estruturas
estatais e me declarando “inimicus curiae” da ordem jurídica e de todos que a
utilizam para o fim de justificar a situação pela qual passam os terceirizados.
Mas, como se diz, sou brasileiro, e brasileiro não desiste nunca! Fora,
ademais, mais essa lição que apreendi do contato que tenho tido com aquelas
pessoas desde então...
Além disso, os meus
amigos terceirizados merecem que me esforce para lhes dar uma resposta que
possa constituir, de alguma forma, um alento para a situação a que foram
submetidos.
Aos terceirizados, aos
quais esse texto é dedicado, cumpre, então, dizer:
a) mantenham-se
mobilizados, exercendo a sua capacidade de organização, advinda da indignação e
do sentido de cidadania, que se alimenta pela luta por direitos;
b) nesta mobilização,
atuem de forma pacífica, não cometendo nenhum ato de agressão do patrimônio
alheio, isto para que não sofram ainda mais, na medida em que no primeiro
deslize a espada da lei, que não pesou sobre quem não lhes pagou salários,
será, por certo, debruçada sobre seus esqueletos;
c) não tenham esperança
de que seus salários serão pagos em curto espaço de tempo e tampouco suas
verbas rescisórias. Tudo se arranja para que vocês sejam forçados a ingressar
com ações na Justiça do Trabalho, onde, depois de meses, lhes será proposto um
acordo para recebimento de parte de seus direitos, em suaves parcelas, com
quitação de todos os eventuais direitos que lhes possam ter sido suprimidos
durante o curso da relação de emprego, isto se, seu empregador, a empresa
prestadora de serviços, não pedir falência e nada lhe pagar, concretamente;
d) a Universidade de São
Paulo em nenhum momento vai descer de seu pedestal para dialogar com vocês,
reconhecer seus direitos e muito menos lhes pagar, diretamente, o que vocês tem
direito;
e) diante do pressuposto
jurídico, estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal, e em conformidade com a
estratégia jurídica já assumida pela Universidade, a possibilidade de se chegar
à declaração da responsabilidade da USP pelo adimplemento de seus direitos,
mesmo daqui há vários anos, é bastante restrita, o que lhes impõe sério risco
de não receberem, agora ou depois, nenhuma verba de natureza estritamente
trabalhista.
O que fazer, então?
Primeiro, tentar por todos os meios, lícitos, sobreviver: arrumar novo emprego;
manter os “bicos” em que geralmente se envolvem e organizar um fundo de greve,
buscando atrair a solidariedade social para sua causa, o que, ademais, já se
demonstra uma realidade, como demonstra o abaixo-assinado organizado por alunos
da Faculdade de Direito da USP, com cerca de 500 assinaturas e um manifesto,
subscrito por professores e servidores, em elaboração. E, segundo, persistir na
luta pelos direitos, pela via judicial, mantendo-se a crença na estrutura
judiciária trabalhista, só que com formulação jurídica em bases diversas
daquela que tradicionalmente se apresentam para situação como tais.
Ora, os fatos acima, uma
vez concretizados, embora ruins por um lado, porque põem em risco a sua
sobrevivência, por outro lado, pela própria atrocidade que os caracteriza, dão
ensejo a direitos que vão muito além do mero recebimento dos valores
inadimplidos. Quem trabalha, cumprindo as obrigações fixadas na relação
jurídica trabalhista, tem direito ao recebimento do salário. Quem não recebe o
salário sofre um dano que não se supre pelo mero pagamento, em momento
posterior, do salário. Em outras palavras, o não pagamento do salário
constitui, por si, um fato jurídico que enseja efeito próprio, já que fere o
direito fundamental à vida.
Concretamente, todo o
sofrimento que vocês estão passando e que está registrado publicamente,
proveniente das humilhações sofridas, identificadas, sobretudo, na constatação
da forma fugidia que as entidades que ensejaram a situação tem adotado,
tentando fugir da responsabilidade perante o grave problema da ausência de
pagamento de salários e a perda do emprego sem o pagamento de verbas
rescisórias, deve ter reparação específica, que se supõe seja, necessariamente,
condizente com a dor experimentada, ou seja, milionária.
Esta indenização por dano
moral, cujo montante cabe a cada um avaliar, não desafia o entendimento
estampado na decisão do Supremo Tribunal Federal na referida ADC n. 16, vez que
não se trata de recebimento de verbas de natureza trabalhista e sim de
reparação por danos morais, sendo certo que os entes públicos são objetivamente
responsáveis pelos atos praticados por seus prepostos perante terceiros.
Para se ter uma idéia,
recentemente o Estado do Maranhão foi condenado a pagar R$33 mil de indenização
por danos morais a três pessoas de uma mesma família – pai e dois filhos – por
agressão verbal e física que lhes fora desferida por policiais militares na
saída de um clube na Vila Maranhão, fato que ocorreu em maio de 2004. A 4ª
Câmara Cível do Tribunal de Justiça manteve a condenação de primeira instância.
Já, a 9ª Câmara de
Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve condenação contra o
Estado, que deverá pagar indenização por danos morais e materiais à esposa e ao
filho (R$60 mil para cada, além de um salário mínimo por mês – a viúva receberá
a pensão até a data em que o esposo completaria 65 anos e o filho, até atingir
24 anos, quando possivelmente já terá concluído os estudos superiores e estará
apto a trabalhar.) de um detento assassinado na penitenciária. O homem cumpria
pena no Complexo Penitenciário I de Hortolândia e foi morto por outro preso da
mesma cela.
De acordo com o voto do
relator, desembargador Oswaldo Luiz Palu, “a partir do momento em que o
indivíduo é detido, este é posto sob a guarda e responsabilidade das
autoridades policiais e (ou) penitenciárias, que se obrigam pelas medidas
tendentes à preservação da integridade corporal daquele, protegendo-o de
eventuais violências que possam ser contra ele praticadas, seja da parte de
seus próprios agentes, seja por parte de outros detentos, seja por parte de
terceiros” (Apelação nº 0201335-95.2008.8.26.0000).
A 20ª Câmara Cível do
TJRJ, por sua vez, condenou o Estado do Rio de Janeiro a pagar R$30 mil de
indenização, por danos morais, a uma pessoa que foi atingida por uma bala
perdida em março de 2007, no bairro de Bonsucesso, nas imediações da Linha
Amarela. Segundo o relator do processo, Desembargador Marco Antonio Ibrahim,
"Nos dias de hoje parece despropositado o entendimento de que, numa cidade
como o Rio de Janeiro, o Estado não deva ser responsabilizado pelos diários
episódios de balas perdidas que têm levado à morte e à incapacidade física
milhares de cidadãos inocentes. Não se pode olvidar que, sendo a segurança um
dever imposto constitucionalmente ao Estado, não há qualquer poder
discricionário do administrador quanto a isso. Há uma guerra não declarada, mas
as autoridades públicas, aparentemente, ainda não perceberam a extensão e a
gravidade da situação".
E acrescentou: "A
verdade é que as decisões que deixam o Estado impune diante do grande
descalabro que grassa na segurança pública de nosso Estado servem de efetivo
estímulo para que a Administração permaneça se omitindo genericamente. Se o
Estado não tem culpa, de quem será a culpa? Dizer que o Estado não é
responsável equivale, na prática, a atribuir culpa à vítima. O dano sofrido é a
sanção. Quando se multiplicarem as indenizações e os governos ficarem sem caixa
para realizar obras e projetos que rendem votos, a situação se transformará
drasticamente".
Como se vê, é improvável
que a USP não seja responsabilizada, diretamente, pelo sofrimento experimentado
pelos cidadãos brasileiros que ostentam a qualidade de empregados de empresas
prestadoras de serviços, contratadas pela Universidade em processo licitatório
estabelecido a partir da regra do menor preço, que impõe a precarização da vida
dessas pessoas, conduzindo-as à condição de semi-escravidão e à “punição” de
não verem respeitados os seus mais rudimentares direitos trabalhistas, que
possuem, como se sabe, “status” de direitos fundamentais, além de caráter
alimentar. Os terceirizados também são cidadãos brasileiros e se forem
vitimados por uma prática irresponsável cometida por um preposto do Estado, com
relação à qual a própria participação do Estado, ainda que indireta, não pode
ser negada, é impossível negar-lhes a devida reparação pelo dano experimentado
junto ao Estado.
Já passou da hora,
ademais, de se reconhecer que as estratégias de supressão de direitos
fundamentais constituem, por si, uma agressão jurídica que induz efeitos
jurídicos próprios, que sejam, efetivamente, coercitivos, punitivos e
desestimuladores.
Caros amigos
terceirizados, documentem todo o sofrimento que estão passando e depois busquem
a devida indenização reparatória e, claro, não abram mão de cobrar, também, o
recebimento de seus direitos trabalhistas, buscando a responsabilização de
todos que tenham se valido direta ou indiretamente do trabalho que vocês
executaram.
À comunidade jurídica, o
que resta dizer é: há de se reconhecer o quanto o fenômeno da terceirização
desmonta a condição humana, sendo mais que urgente eliminá-la de nossa
realidade, tanto na área pública quando no setor privado, mediante a
proliferação de declarações da existência de vínculos jurídicos diretos com os
tomadores de serviço, acompanhadas da responsabilização solidária dos entes
envolvidos, com base nos artigos 932, 933 e 942 e seu parágrafo único do Código
Civil, dentre outros, valendo lembrar que não há um só dispositivo jurídico a
legitimar a terceirização a não ser os próprios entendimentos jurisprudenciais.
Quanto ao vínculo direto com a Administração pública, importante lembrar que a
ausência da realização de concurso público não pode ser invocada exatamente por
aquele que descumpriu a Constituição, não sendo, portanto, obstáculo à
configuração da relação de emprego, a qual, cumpre lembrar, tem sede
constitucional no nível dos direitos fundamentais. A ausência do concurso pode
ser invocada, unicamente, para vetar a aquisição do direito à estabilidade no
emprego público, que está vinculada a este requisito. A esses efeitos deve se
seguir a indenização por dano moral acima sugerida, que advém, na esfera
pública, do próprio procedimento de se buscar o serviço de uma pessoa em
desrespeito à sua condição de cidadão. O fato é que a terceirização nos põe
diante de um dilema que nos obriga a escolher entre preservar a eficácia da
ordem jurídica protetiva da dignidade humana ou aceitar a concreta ineficácia
do direito e com isso satisfazer os interesses econômicos que estão envoltos em
tal prática. O conhecimento da triste realidade a que são submetidos os
terceirizados, sobretudo quando se está próximo ao final de cada contrato de
prestação de serviços firmado entre as entidades tomadoras e prestadoras, não
nos pode deixar dúvida quanto a que posição tomar, não sendo desculpa alguma o
argumento da existência de um obstáculo criado pelo direito, o qual, de fato,
não nos impõe uma resposta contrária à preservação da condição humana dos
terceirizados, muito pelo contrário!
Assim, não há mesmo
espaço para desânimo ou acomodação, como se estivéssemos marcados, como gados,
pela inexorabilidade da injustiça social. Neste assunto, mais do que nunca,
impõe-se uma luta vigilante e comprometida, mantendo-se, sempre, a esperança de
que a vitória não será daqueles que não se importam com a vida alheia e com o respeito
à ordem jurídica constitucional, cujo pilar é a preservação da dignidade humana.
A luta continua meus
amigos... É como dito na belíssima canção de Ivan Lins e Vitor Martins:
Desesperar jamais
Aprendemos muito nesses
anos
Afinal de contas não tem
cabimento
Entregar o jogo no
primeiro tempo
Nada de correr da raia
Nada de morrer na praia
Nada! Nada! Nada de
esquecer
No balanço de perdas e
danos
Já tivemos muitos
desenganos
Já tivemos muito que
chorar
Mas agora, acho que
chegou a hora
De fazer Valer o dito
popular
Desesperar jamais
Cutucou por baixo, o de
cima cai
Desesperar jamais
Cutucou com jeito, não
levanta mais
São Paulo, 18 de abril de
2011.
TAGS: terceirização
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